As sapatilhas

Sonho CCLXXXVIII



Enquanto arrumava as gavetas da cómoda que viera de Macau há quase cem anos atrás, descobrira, totalmente esquecidos, vários pares de sapatilhas para dançar. 

Como pudera esquecer-se de um tal tesouro?

Havia sapatilhas mais macias que eram perfeitas para fazer meia ponta, outras que eram boas para girar e outras para escorregar. Havia ainda umas mais rijas e tesas que pareciam maravilhosas para os equilíbrios. 

Todas as sapatilhas estavam bastante sujas e gastas.

Faziam lembrar uma fotografia das sapatilhas do Nureyev, num camarim, muito estragadas.

Como pudera esquecer-se das sapatilhas, numa casa tão meticulosamente arrumada?

Como pudera esquecer-se de tantas horas da sua vida?

Havia talvez, na casa e em si, um caos que transcendia a sua consciência, de um modo profundo e irrevogável?

Seria talvez urgente tomar uma resolução, fazer qualquer coisa, inventar uma estratégia?

Inventar um novo mundo?

Dentro de si havia uma segurança que se desmoronava como terras em derrocada, como cartas dispersas no vento, para nunca mais.

Havia uma inocência que nunca mais poderia ser recuperada.

Porque há uma estranheza avassaladora quando algo aparentemente insignificante nos faz balançar entre a vida e a morte. Entre dobrar a roupa limpa e arrumá-la, nessa luta diária contra a entropia que parece querer instalar-se em tudo, subrepticiamente - ou diluir-nos na escuridão, para sempre.