Tarântulas e convenções sociais

Sonho CCLXXXIX




F. de Riverday estava num pic-nic e decidiu juntar-se ao grupo das crianças.

Descobriram uma coisa muito divertida: a maneira como certos animais do parque brincavam com um buraco que havia na rede da baliza.

Os animais saltavam pelo buraco da rede em corrida, como se este fizesse parte de um circuito de obstáculos para cavalos.

Riverday lembrava-se dos seus encontros inesperados com animais, ao longo desse doloroso e malfadado Verão. 

Não se lembrava de alguma vez ter sofrido tanto, nem de nunca lhe ter doído tanto o peito e o coração, ao ponto de lhe parecer que iria adoecer.

Faz parte da natureza humana que o mais depressa possível nos esqueçamos dos sofrimentos passados.

Estava convicta de que todos esses encontros teriam um significado, mas ela não tinha meios de o descortinar.

Seria o universo em urgência a tentar transmitir-lhe alguma coisa?

À porta de casa, um coelho.

À beira do mar, uma serpente.

De novo à porta de casa, um pássaro morto.

Poisada no chão da berma da auto-estrada, uma águia, bem viva e alerta.

Pendurada do seu cabelo por um fio, uma aranha.

Era como se tocasse difusamente nas franjas de um conto encantado, e agora, no sonho, todos esses animais saltavam pelo buraco da rede.

Ela e as crianças contemplavam-nos, maravilhados, mas os adultos não percebiam a causa de tanto maravilhamento.

- O que estão para ali a fazer, especados? O que estarão a ver? - perguntavam eles.

De repente, aparecia uma funcionária do zoo, num grande alarido.

Tinha fugido uma das sete tarântulas que o zoo mantinha em exposição.

Riverday sempre detestara zoos. Depois da primeira visita, em criança, nunca mais fora capaz de lá voltar, para ver animais enjaulados.

Ficava contente pela tarântula.

No meio do silêncio geral, a F. de Riverday disse:

- Ai...

O que a deixou muito mal colocada perante o grupo, pois não era suposto que se fizesse nenhum comentário do género, muito menos dizer «Ai».

A Riverday voltou a sentir aquela velha perplexidade infantil que sempre sentira perante o comportamento de todo o tipo de massas, fossem elas as grandes massas de guerra, das classes, dos povos em marcha ou do consumo, ou fossem as pequenas massas das famílias e de outros grupos numericamente mais singelos.

Como poderiam as pessoas assim em matilha desejar as mesmas coisas, subscrever as mesmas opiniões e repetir os comportamentos uns dos outros, nessa estranha mecânica da reprodução social, que garantia, no fundo, a coesão das estruturas, mas também o seu anquilosamento?

Não há dúvida: seria sempre uma espécie de pequeno pária.

O seu instinto de rebeldia e liberdade extravasava por todos os poros.