O amor das nossas vidas

Sonho CCLXXXVI



Do ponto de vista da razão pura, poder pronunciar um tal conjunto de palavras é porventura uma das coisas mais paradoxais e extraordinárias da vida do pensamento humano.

O que são as nossas vidas?

Esses dias infinitos e esquecidos, que começaram não nos lembramos onde e que acabarão não sabemos onde, quando chegar o dia da nossa morte, quem poderá dizer o que foram?

Talvez um deus contemplativo que tenha connosco um pacto eterno acompanhe a nossa alma com a intimidade de uma visão total e absolutamente lúcida, quem sabe?

E nós, num desses peculiares momentos em que nos sentimos eternos, a nós e aos outros, e parece que a nossa visão trespassa as coisas como um diamante, com uma evidência aguda e esplendorosa.

Por vezes, na solução ou na saída de uma grande crise, tece-se uma epifania geral da descoberta e do sentido, uma revisão de todas as coisas, que mudam de posição como massas e partículas numa explosão de estrelas. 

Outro caso é quando, por uma série de operações obscuras e vislumbres mágicos e misteriosos, percebemos que alguém pode ser o amor das nossas vidas.

Nesses momentos agitados e velozes, maravilhosos, críticos e tantas vezes trágicos, é que sentimos sem sombra de dúvida o que são as nossas vidas, de onde vêm, para onde vão e porque as vivemos, ainda que, se nos perguntarem, continuemos a não ser capazes de dar uma resposta articulada a estas questões.

Sabemos que é simplesmente assim e temos uma estranha visão total que não podemos descrever nem relatar, a não ser, talvez, escrevendo uma imensa história peculiar, um infinito romance polifónico onde a cada detalhe seja dado o devido esplendor, a cada episódio de caos a profundidade do absurdo e a tudo, no final, essa lucidez ridente e diamantina da visão que vê.

No sonho, estávamos numa imensa praia deserta de areias finas, eu e o amor da minha vida, sentados  frente a frente como duas crianças que estivessem a fazer um buraco na areia.

A areia caía da minha mão direita, como o tempo de uma clepsidra.

- Que areia tão fina!...

- Ouves este silêncio?

- Oiço.

Pois era como se toda aquela paisagem colorida e brilhante, o imenso e cintilante areal e o mar e as palmeiras respirassem.