contraponto e confissão (14) - o rosto e a máscara

 

Mas eis que a expressão do rosto obedece a inúmeras regras não formuladas e não enunciadas. Algumas, como não deitar a língua de fora nem abrir desmesuradamente a boca, aprendem-se em criança. Outras, como não rir de boca aberta, só são explicitadas pelos mais velhos no florir da sexualidade, na puberdade. Não chorar. Não gritar. Não amuar. Não fazer "má-cara." Não torcer o rosto num esgar, mesmo quando se abomina a comida. O rosto está coberto de regras, de teias, de redes, de grades, de suposições, de ideias, de mentiras e depressa se enche de manchas, de feridas, de rugas, de borbulhas, de pequenas pastas que emergem, como suaves e torpes tumefacções. Há quem tenha vergonha de corar. Por fim, os vermes hão-de comer o rosto, assim como a carne. A energia libertada dessa bela decomposição talvez dê para criar um outro universo, paralelo a este. Bacon pintou com invulgar maestria a violência que subjaz e se impõe nos rostos. Dos rostos um outro olhar mais livre pode captar as equimoses, os derrames, as torções, os buracos e os abismos, como grandes pancadas e golpes infligidos na alma. Mas todos fingimos que não vemos. Ah!... Nada disso se vê, meus queridos amigos. Não se nota. Queremos acreditar que essas coisas não são visíveis, pois não? Um sorriso puro, sem mácula, exibindo uma fileira de dentes brilhantes. Um olhar confiante, mesmo quando a alma se arrasta como o mais miserável dos moribundos, tudo isso é tão necessário como não sair apenas de meias para a rua e andar de sapatos calçados. Sim, o rosto é uma regra social. Gente que traz nos olhos a vida, onde estais? Gente que olha para a câmara sem saber o que é uma câmara, sem trazer consigo a sua "pose," onde estais? Outra humanidade, onde estais? Seriedade selvagem, onde estais? Onde estais, revolta, desamparo, tristeza? Nascemos de rosto aberto e transparente, mas depressa ele aprende as suas mentiras. Não podemos chorar nem gritar a toda a hora, nem podemos torcer o rosto nessa careta que traduz a nossa náusea permanente, a náusea que o mundo nos inspira. Vivemos no tempo dos agradáveis sorrisos, do elogio da felicidade. Que linda, a felicidade.