contraponto e confissão (13) - médica sem fronteiras, escritora


Muito jovem, pensei que teria duas escolhas. Ou seria médica sem fronteiras ou seria escritora. A primeira tarefa parecia-me extremamente necessária, algo que tinha de ser feito. Uma forma pacífica de lutar, de transformar um mundo cuja visão me inspirava tanto sofrimento e revolta. Nessa altura, na minha primeira juventude, lembro-me bem de como tive de me obrigar a parar de pensar em muitas coisas, pois corria o risco de morrer a cada segundo. Como viviam as meninas na Nigéria. Como morriam os palestinianos. Como trabalhavam os pobres. Como se prostituia no Cais do Sodré uma menina de catorze anos que nascera na barraca em frente da minha casa. Como a lama cercava as barracas, no tempo da chuva, e tudo cheirava mal por ali. Como se tirava o leite das vacas e os ovos das galinhas. Como se cortava a carne nos talhos. Só na comida que chegava à minha mesa, a comida que comia com grande apetite, se pensasse muito, não conseguiria mais engolir, quanto mais comer. A vida dos animais. Um cão magro que passasse por mim, de olhos angustiados e famintos. Aquele casal de bêbados que vivia numa casa abandonada e arrastava nos braços os dois filhos escanzelados e minúsculos e onde se via sempre, nas carinhas sujas, os riscos marcados do choro. Em cada pensamento havia um risco de colapso absoluto, se me atrevesse a pensar e a sentir o que via. A minha alma era como uma esponja que podia absorver toda a dor e explodir. Mas senti cedo que poderia viver abdicando da primeira missão, interventiva, mas não da segunda, irrelevante em potência. Estranhas certezas. Esta foi uma forma de perplexidade que me acompanhou durante muito tempo. Porquê? Não havia nada de lógico nesta escolha, pelo contrário. Escrever poderia ser um acto simplesmente hedonista, delicadamente irrelevante, e o seu alcance real sempre impossível de prever ou medir. Então para quê? Durante muito tempo me consolei com o facto de que semelhante tarefa pelo menos teria a vantagem de produzir um lixo inócuo. Quer dizer: um dano irrelevante. Melhor do que andar de carro todos os dias. O António Pizarro dedicou-se a pensar nisso. Porém, fugir de casa é muito difícil, principalmente quando se é uma menina. Os perigos sopram por todo o lado. Não valemos muito. É impossível não reparar desde muito cedo nesse cinismo hipócrita da boa sociedade que defende grandes valores ao mesmo tempo que vai descartando vidas humanas, de forma mais ou menos encoberta e subtil. Uns ganham muito, outros quase nada. O tempo de uns vende-se caro, enquanto outros trabalham de graça. E nem sempre os primeiros são melhores ou mais inteligentes, está à vista de qualquer criança. Fugia de casa, sempre à frente de um pelotão de não-razões para sair. Como fazer mais? A partir desta estranha certeza comecei então a viver o meu tempo de ficção, mas não eram máscaras os meus falsos nomes, todos eles declarações de amor, pedaços de nomes de gente que amei. A minha única máscara era o meu próprio rosto, que disfarçava numa aparente uniformidade tanta gente por dentro, tantos amores.