O modo como se reduzem as nossas expectativas

Sonho CCXCVIII



Depois de ter feito aquela entorse, os sonhos eram simplesmente sobre ser capaz de andar.

Que maravilha, poder andar!...

Passados alguns dias, os sonhos reduziam-se a poisar o pé no chão.

Que bela sensação, poder ter a palma do pé sobre o chão!...

Passados mais dias, os sonhos eram só sobre mover um pouco o pé.

Que bom poder esticar e encolher o pé e espreguiçá-lo!...

É extraordinário como, à medida que a realidade nos castiga, a nossa alegria se compõe de expectativas cada vez mais ínfimas.

Mas é também incrível como o nosso virtuosismo especulativo, teórico e vagamente maníaco se aplica em encontrar causas para um acidente tão disparatado, num mero desnível de passeio.

Teria sido cansaço?

Ou haveria antes uma causa final, como uma aprendizagem necessária?

Seria uma espécie de enredo, a nossa vida, um enredo em que à custa de certo episódio, um outro se segue, ou não se segue?

De nada lhe valia essa inclinação especulativa, insana e praticamente irresistível.

Fazia-lhe falta moer com exercício físico esse motor automático do seu pensamento.

Mas, graças a não sei que última lucidez, havia uma força interior que impedia qualquer hipótese de assentar definitivamente arraiais.

O mais provável é que fosse apenas uma fala de corpo, como quando existem certas dores que a alma não pode mais sentir e o corpo decide gritá-las com a sua língua própria.

Uma língua de escultura e dança, uma língua de metáfora, de cinema e traço.

«Não me tenho de pé.» - gritava-lhe o corpo.

Porque a dor é como um gás maligno e explosivo que não pode permanecer encerrado no espaço em que está.

Se a alma não pode mais sentir, é o corpo que rui, como um baralho de cartas.

Como se ambos fossem vias a-paralelas, canais de escape da sensibilidade que por sofrer intensidades demasiado agudas por vezes se torna intransitável.

Neste caso, ainda que tenhamos medo de começar a chorar, choramos.

Pode ser que seja apenas uma lágrima, a qual tememos quase tanto como a morte, porque através dela parece que o centro do nosso corpo, o coração, se irá desagregar em nada para nunca mais poder voltar a ser inteiro.

Que isto seja apenas uma ilusão... 

Como o desejamos.