Certa ruína, certa morte, certa vida

Sonho CCXCVII



Já tinham passado muitos, muitos anos.

No sonho, podia ver com nitidez o meu rosto no espelho.

Teria noventa, cem anos?

Quem ficara?... Quem partira?...

Parecia que ainda ontem fizera o luto dessoutro rosto de criança, que tão cedo perdera, para ser outra coisa, talvez mulher.

E agora, já era a hora da nossa morte?

Quão rápida a vida fora!...

Quão voraz o tempo!...

Fora só isto?... Como um estalar de dedos?...

Já era a hora?...

Cada ruga trazia certa história, certa emoção, certa alegria ou tristeza sedimentada.

Certos pensamentos obsessivos que porventura tinham erodido a pele, como lagartas subterrâneas.

Havia riscos na pele que falavam de perspicácia, de crueza, de acutilância, de orgulho, de altivez.

Havia outros que marcavam a luta entre a desilusão e a esperança.

Certa dor pelo desencontro entre o amor e o desejo de um certo amor, certa falha de amor.

Outras linhas, tão pungentes, diziam ainda de uma velha inocência e estranha beleza arruinada, desconhecidas.

Só agora que tinham passado, só por essas linhas que ficavam pela passagem podia perceber que tivessem existido.

Irónico desfasamento entre a consciência e o tempo, que nos sequestra como cegos ao presente.

Olhava para aquele rosto tão frágil no espelho como uma folha que treme e está prestes a cair.

O que o segurava?

Um estranho e paradoxal amor a Deus - sensação sem imagem impressa a fogo no caroço do corpo, como um selo à nascença?