Poemas a um Deus Plural - rascunhos (2) de Françoise M.

 

A minha fé é como a terra. 

Tem muitas camadas e muitos estratos, 

uns sobre os outros. 

A minha fé é assim, porque eu não tinha fé.

A minha fé começou em ser habitante do esplendor.

O esplendor que de repente entrava nos olhos,

a propósito de nada.

O esplendor que tomava conta das sensações,

o esplendor de uma terra em chamas

e em que cada coisa ardia com luz própria.

O esplendor que fazia cantar as visões,

até que os ossos 

fossem líquidos como lágrimas.

Esse esplendor sinfónico 

a partir do qual apenas podia pensar:

Deus.

Ser, talvez, atacado por uma ideia.

Em ver o esplendor, a ideia era Deus:

um Deus sem ideia, sem nenhuma ideia.

Um deus que ocupava todo ele

a sensação do esplendor.

Pensamento tão trôpego, tão difícil,

tão desesperado. 

O pensamento não podia, não podia

acompanhar a dança invisível

das minhas sensações.

Seria a alma dançando no corpo?

Seria o corpo da dançando na alma?

Seria Deus como causa 

de um tal arrebatamento indizível?

( - que nenhuma palavra poderia cingir.)

Jamais, nunca o meu pensamento

pôde pensar este acontecimento.

A minha fé começou então

por ser uma fé nos mortos.

Não estava preparada para isso.

Nada na minha educação o pressupunha.

Mas quando tu morreste, querida amiga,

a minha fé estava lá.

Quando tu morreste, mãe do meu amor,

eu vi que os mortos viviam.

E tu dizias:

«Diz ao meu filho que estou bem.»

O teu filho chorava.

Porque só eu te podia ouvir?

Fui apanhada também aí,

como uma expedição numa emboscada,

sem aviso, sem preparação,

mas não tive medo.

Como alguém que passa numa esquina

e é arrebatado por um bandido,

assim estava eu,

mas não tinha medo:

a minha tranquilidade era absoluta.

Os mortos apanharam-me de rompante.

Os mortos apanharam-me

e mudaram tudo o que eu sabia.

Não vos vi. Não vos ouvi.

Nem fantasmas, nem vozes,

como aparece nos livros.

Quem sabe o que são vozes mudas?

Eu sei.

São as vozes dos livros e são as vozes dos mortos.

São as vozes que ditam os textos na minha cabeça

e que aparecem sempre fora do tempo,

indevidos.

Presenças vivas incontornáveis.

Estavas por perto, minha amiga, e ainda estás.

Eras talvez demasiado jovem,

não soubeste como partir.

Como explicar?

Apareceram coisas muito parecidas

com o teu sentido de humor.

Por exemplo, um anúncio

num écran de Multibanco.

Aparecia uma coisa, sobre um chocolate,

em que o humor só vivia do contraste.

Ou seja, só vivia por ter aparecido

ali, naquele preciso momento.

Não era pela coisa em si.

Era pelo corte imprevisto

que operava no contexto

e que suscitava a tua presença, 

o teu sub-riso,

de uma maneira que era maior

do que qualquer imaginação.

Maior do que o meu sonho da tua presença.

Maior do que o meu desejo da tua presença.

Maior do que a minha saudade da tua presença.

Então, posso dizer:

a minha fé começou com os mortos.

Agora, quando me visitam nos sonhos,

sei que são eles - os meus mortos.

Porque os mortos são sempre de alguém.




Imagem criada em parceria com a AI,
Setembro 2025