Sobre a maldade das boas intenções

 Sonho CCCXIII


F. de Riverday colocara-se numa péssima situação. Subira pelas escadas de incêndio de um prédio de sete andares e agora, por causa das vertigens, não conseguia descer. Não deixava de ser uma posição interessante. Podia ver, nas várias cozinhas iluminadas, diferentes pessoas a preparar o jantar. Pensou que essa contemplação a poderia distrair das suas vertigens e assim dar-lhe coragem para descer, mas, pelo contrário, aquelas vertigens fizeram-na tremer de tal maneira que escorregou e ficou suspensa, presa apenas por uns pequenos ferros, a uma altura de sete andares. «Morro de certeza, se cair. Não há qualquer hipótese.» Numa voz muito sumida, a F. de Riverday começou a pedir ajuda. «Chamem os bombeiros...» Pedia ela. Mas não podia falar mais alto com medo que tudo se desmoronasse e, naquele equilíbrio instável em que se encontrava, nem sequer tinha forças para repetir muitas mais vezes o pedido. Em que sarilho se tinha metido!... De repente alguém numa das cozinhas se apercebeu do que se passava. Veio um grupo de pessoas, todas com muita vontade de salvar a F. de Riverday. Pegaram nela e tiraram-na do perigo, mas queriam cortar as suas pernas, para poderem transportá-la melhor. A F. de Riverday suplicava que não fizessem isso, que não era boa ideia, mas eles achavam que sim e diziam que depois no hospital colocariam de novo as suas pernas, com uma operação. Enquanto foram buscar as serras, a Riverday conseguiu convencer um dos rapazes e raparigas a levarem-na inteira para um local seguro. Assim aconteceu, graças à sorte. Mas nunca deixa de ser surpreendente a dimensão que pode tomar a maldade de uma boa intenção.

Imagem criada com ajuda da IA


Dentes e fadas

Sonho CCCXII

De repente, dei-me conta que me faltavam vários dentes na parte de trás da boca, no maxilar inferior. Que coisa tão estranha! Não me tinha apercebido de ter arrancado assim tantos dentes. Pelo contrário, costumava sentir muita satisfação com os meus dentes. Limpava-os e escovava-os cuidadosamente. Tinham nascido bem alinhados, simétricos e fortes. Iria custar muito dinheiro fazer implantes para todos aqueles buracos. E além disso, tinha um outro dente a abanar. Meu Deus... que caos... Abanava tanto que pude tirá-lo com a língua, como se fosse um dente de leite. Olhei para o dente com espanto, pois era mesmo um dente de leite, sem raiz. Como era possível que me caísse um dente de leite aos cinquenta anos? A minha maturidade tinha sido difícil de alcançar, mas não imaginava que esse processo também tivesse um reflexo expressivo no meu corpo. Pelo menos havia esperança de que nascesse um outro dente, desta vez definitivo. Tentava animar-me com essa ideia, perante tantas constatações dolorosas. Uma criança falava da fada Serôntia. «Nunca ouvi falar.» - dizia eu. «Quem é ela?» «É a fada dos jardins, que cuida das flores.» Precisava muito dessa fada, estava contente por saber que existia. O meu jardim secreto, aquele espaço dos meus sonhos que eram só meus e em que ninguém podia tocar, estava em ruínas e parecia um matagal. Havia muito trabalho a fazer e a ajuda de uma fada seria excelente. 

Imagem criada com a ajuda da IA


Mosteiro Interior

 



Criei esta imagem com recurso à inteligência artificial. Não me satisfaz inteiramente, mas é um ponto de partida para uma tarefa de imaginação. Comecei por pedir ao Gemini a imagem de um labirinto a preto e branco e a máquina deu-me um labirinto bastante inócuo e desinteressante, quase asséptico e, na verdade, artificial. Pedi então que o transformasse segundo o estilo de Escher. Surgiu uma coisa mais interessante e, curiosamente, sem o espírito de Escher. As escadas estavam orientadas segundo uma perspectiva normal, ainda que não conduzissem a lado nenhum. As pessoas pareciam manequins. Era uma coisa quase inerte, nitidamente uma cópia, uma inspiração pobre. Pedi então à máquina que acrescentasse algo de incompossível à imagem. Nesse momento, tive a clara sensação de não ter sido compreendida, mas foi igualmente interessante porque a máquina "varreu" a imagem e a impregnou de um sentido abstracto que me desagradou profundamente. Digamos que a imagem estava ainda mais morta. Percebi que me faltava qualquer coisa que não sei definir e que talvez fosse uma solução para aquela sensação de ausência de vida na imagem, uma solução que passaria por um aspecto medieval, por qualquer coisa afim de uma alma medieval, anti-moderna. Pensei em Tarkovski. Pedi então ao Gemini que recuperasse os passos anteriores e que desse à imagem um aspecto medieval e o resultado foi bastante surpreendente, fiquei contente. 

O conceito de mosteiro interior inventei-o a partir de um outro conceito muito antigo, o de "palácio da memória". Cícero fala deste método no seu De Oratore. Sempre achei o conceito fascinante, embora nunca o tenha colocado em prática. Mas eu própria em criança tinha o hábito de criar espaços imaginários, cujo mapa memorizava e onde tinha o hábito de brincar. Eram espaços muito complexos que multiplicavam o espaço real em muitas camadas, divisões e andares, tal como o labirinto desta imagem, que talvez por isso me tenha agradado. Desde muito jovem senti um grande fascínio com o que imaginei ter sido a vida dos primeiros monges, cristãos revolucionários que se uniam num propósito comum, principalmente um fascínio com a vida daqueles que anonimamente trabalhavam nos campos, rezavam nas horas marcadas pelo toque dos sinos, estudavam nas bibliotecas, pintavam iluminuras e serviam na sua comunidade, instruindo e cuidando. Também é verdade que muitas vezes imagino que é possível que eu mesma tenha sido uma monja numa qualquer outra vida e que essa talvez tenha sido uma vida especialmente pacífica e feliz. Não sei porque me visitaram tão cedo estas estranhas ideias, que até para mim mesma foram e ainda são estranhas. Mas como não existe na sociedade actual um mosteiro no qual me pudesse integrar, inventei este conceito, como modo de sobrevivência. 

Não se trata de um simples conceito que sirva apenas uma experimentação abstracta, de pensamento ou de colocação de hipóteses. Na verdade, trata-se de um conceito habitável e trata-se de uma maneira de viver. Trata-se de viver uma vida para Deus, mas esse Deus não é o de nenhuma religião, é um pensamento singular e uma experiência em constante movimento e expansão, na verdade, é como um processo de amplificação da consciência pela acção e por uma prática que é quase uma técnica. Diríamos que essa técnica é muito específica e composta por certa espécie de disciplina e por vários elementos insignificantes e concretos que por vezes se podem traduzir em epifanias. Os pensadores mais importantes e que me ajudaram a dialogar com este pensamento e com estas descobertas e acontecimentos foram Kant, Espinosa, Dostoievsky, Tarkovski e Jesus. As duas experiências mais importantes foram a do esplendor, na dança e na natureza, e a da oração sem palavras, na execução e na leitura da música de Bach para teclado, ao piano. Uma terceira experiência radical foi a de definhar, na separação de Deus. 

Tudo isto está dito de forma extremante sucinta e praticamente incompreensível. Na verdade, cada uma destas frases poderia produzir um livro. A ideia de ser como um invisível monge moderno, lutando de algum modo pela paz e pela liberdade por meio de uma técnica específica, mas em movimento, a ideia de se ser, de algum modo, missionário, mas de um modo invisível, esta ideia exige, para ser bem explicada, um longo desenvolvimento. Todos os espaços percorridos no mundo são espaços duplos do mosteiro interior, como se o mundo se espelhasse na alma à maneira de um templo. Por exemplo, pode parecer pouco compreensível que o esplendor se sinta na dança e na natureza, mas de facto essa percepção do esplendor consiste numa sensação, por um lado, do impacto monumental da luz e das cores, uma sensação que traz de um golpe a percepção da grandeza e da infinitude do espaço, e, por outro lado, de um movimento transcendental do corpo que se abre para fora de si numa espécie de voo ou transparência infinitesimal. E quando digo que Deus é um pensamento singular, obviamente não estou a dizer que Deus seja apenas um pensamento; da mesma maneira que o universo não é apenas um pensamento e da mesma maneira que eu não sou só um pensamento, sou um ser vivo no tempo e no espaço, porventura ocupando ainda várias outras dimensões de que não me apercebo. 

Por outro lado, também não quero dar a entender que é "menos" ser pensamento e que é "mais" ser real, isto é, existir. Neste ponto estou com Espinosa, que vê pensamento e extensão (isto é, espaço e tempo) como dois atributos de uma substância eterna e infinita que tem infinitos atributos. Compreendemos melhor a ideia de Espinosa, na nossa visão moderna, se trocarmos o termo "atributo" por "dimensão". Então podemos imaginar uma substância eterna e infinita, universo ou Deus, como um conjunto infinito de dimensões nas quais a nossa existência opera um "corte", extraindo dessa multiplicidade duas dimensões: pensamento e extensão, na forma de espaço-tempo. Não é que estas duas dimensões, por serem apenas duas, sejam falsas ou distorcidas. Elas são vivas e reais, são um corte do infinito. E ainda que o universo como totalidade ou infinitude seja possível de compreender como ideia (nomeadamente como ideia da razão pura), mas impossível de perceber como realidade, isso não quer dizer que o universo como realidade não exista. Mas a percepção e a consciência de Deus como realidade, contudo, pertencem àquele domínio dos actos de fé e das experiências que não são partilhados de um modo universal por todos os seres humanos.