Sobre o valor intrínseco das nossas percepções mais imediatas

Sonho CCLX


Não havia um segundo a perder. A Françoise acabava de se cruzar por acaso com o grande amor da sua vida, esse a quem o destino ou a má sorte nunca lhe permitira tocar.

Entraram por coincidência os dois sozinhos num elevador. Tinham dito apenas «olá», mas a Françoise pensou que não podia passar nem mais um segundo, em toda a sua vida, em que ela não fizesse o que desejava fazer. Caíram nos braços um do outro, num longo beijo como o de Klimt.

Porém, ao contrário de todas as suas previsões, que desagradável surpresa teve a Françoise... Os corpos não se conjugavam. Ao contrário do que esperava, o cheiro da sua pele não a embriagava como um álcool ou como uma droga. Como pudera o seu corpo enganar-se?... O corpo nunca se enganava nesta espécie de previsões... Onde estava aquele calor entontecedor, aquela vertigem? Onde estava aquela velocidade infinita que a deixava com a cabeça às voltas e quase enjoada de um tão embriagante rodopio? Qualquer coisa corria incrivelmente mal... A língua dele parecia uma daquelas rochas moles do fundo do mar onde poisamos os pés e a que estão agarradas muitas algas e outras coisas assustadoras, por não sabermos o que são. A Françoise questionava-se como é que a sua intuição falhara tão rotundamente. Como é que o seu corpo pudera enganar-se de um modo tão absoluto e radical? Alguma vez o corpo poderia falhar desse modo na realidade?... Na verdade, estaria ela na realidade, ou estaria, afinal, num outro plano?... Nesse momento, a Françoise colocou a hipótese de estar a sonhar. Então isto seria uma falha de sonho, como se um sonho lhe quisesse dar uma lição ou pretendesse fazer uma espécie de demonstração... mas... oh!... que tristeza!... Não deveria estar acordada. Certamente estaria a dormir. Não estaria a viver de olhos abertos e sentidos despertos, mas a viver adormecida e a sonhar.

A Françoise não queria ser antipática. Ele parecia entusiasmado e ela não sabia o que fazer. Mal saíram do elevador começou a andar muito depressa, afastando-se, em passo estugado. De costas, a Françoise meteu as mãos dentro da boca e percebeu que afinal também a si nasciam algas da língua.

A Françoise precisava de cuspir, mas ele disse-lhe:

- Não cuspas em cima dos mortos.

Tinham chegado a um sítio onde havia muitos mortos que estavam esticados no chão, em fila, com o seu corpo a descoberto, por tapar.

Jamais cuspiria em cima de um morto.

Existe um horror nos vivos que transforma o corpo dos mortos numa coisa sagrada.

A Françoise cuspiu no chão, ao lado de um morto. O certo era que nunca jamais o seu corpo lhe falhara desta maneira. Estava perplexa e desolada. Desejaria algures bem num fundo secreto de si mesma que aquele estranho amor estivesse morto?

Pelo contrário. A única explicação que encontrava é que o sonho elaborara um estranho e complicado raciocínio por acontecimentos e acções, à laia de consolação, para que aquilo de que a vida a privara afinal não lhe doesse assim tanto.