Hermafrodita

Sonho CCLXI


A Françoise estava maravilhada com a visão de uma mulher de certa idade, inteiramente nua, que fazia a espargata.
 
Parecia habitar o seu corpo com o prazer e a leveza de um felino que habita a savana, ou de um urso que dorme na estepe.
 
Primeiro, fazia a espargata lateral e o seu tronco dobrava-se, ora para um lado, ora para o outro, e, à frente, as duas mãos enlaçavam os pés, com um gesto suave e alheado, entre a sensualidade e o desprendimento.
 
A Françoise meditava em como toda a espécie de crenças e valores nos podem tornar miseráveis e em como somos, de algum modo, tão vulneráveis à sua nefasta influência. Como se um pensamento tóxico e subliminar, que desde cedo nos é inoculado, não só nos contos de fadas e nas histórias infantis, mas em expressões aparentemente inócuas que são proferidas em toda a parte, nos exigisse uma guarda tão constante que ela nos é humanamente possível, pois teria de começar muito cedo, e porque, muito mais tarde, é necessário que essa guarda ou crítica ou demolição, como lhe quiserem chamar, não seja tão radical ao ponto de nos deixar a deambular pelo inferno, o que é também humanamente impossível, pois estamos condenados a atravessar o deserto no momento em que a iniciamos, e quem sabe o que nos tira de lá, sem ser um excesso que nos deixa entre a vida e a morte?
 
A Françoise estava petrificada de fascínio e admiração. Naqueles movimentos lentos, elásticos e fluídos, como fruía aquela mulher o espaço e as dobragens do seu corpo!...
 
Talvez o mais maravilhoso fosse a total ausência de julgamento que se encontrava nela, a fruição absoluta. O corpo parecia ser, não só o avesso da alma, que estava ali toda aninhada e expandida, sem nenhum desdobramento, mas a própria alma em acção e expansão, como um universo ou um bocado de infinito. Naquele corpo o que contava não era a sua lisura nem a sua juventude, mas a potência. E a beleza ali não passava por um ideal de perfeição, mas por um gozo e por uma espécie totalmente nova de dignidade - uma dignidade animal, que era também humana. Aquela mulher não estava a ser vista, estava num outro plano. A sua nudez nem sequer era uma nudez. A Françoise estava ali por acidente ou graça, como num sonho que nos permite vislumbrar mais longe que a natureza. E talvez tudo se passasse entre si e Deus, sem nada no meio que não fosse o ar que respirava e que a incendiava por dentro.
 
A Françoise observava esta mulher de idade com uma sofreguidão de se inspirar, com um desejo voraz de nunca esquecer o que desejaria alcançar, quando reparou, no momento em que a mulher passou à espargata frontal, que ela não tinha apenas um sexo, mas dois.
 
- Ah! Agora tudo se explica!... - pensou a Françoise. - Até a ausência de julgamento!...
 
A mulher era um desses gigantes primordiais que são redondos nos textos de Platão e tão poderosos como os deuses, porque entre si e a natureza existia um circuito fechado do amor que os tornava imunes a todas as mágoas e a todas as ilusões.
 
Saudosa humanidade!