Este livro reúne cinco
contos inéditos em Portugal de Wackenroder, Kleist e Hoffmann,
três figuras cimeiras do romantismo alemão.
Entre si, estes contos têm duas coisas em comum. Todos são textos literários e, portanto, musicais por si só, e em todos existe um mesmo protagonista principal - a música.
É inegável que a música nos atinge directa e fisicamente, isto é, sem qualquer tipo de mediação. Não precisamos de saber rigorosamente nada de música para que nos aconteça sermos profunda ou violentamente afectados por ela. De um abalo deste tipo fala-nos Kleist, no conto «Santa Cecília e a força da música», e também Wackenroder. A música afecta-nos de um modo total e imprevisto, atinge-nos e faz-nos ressoar do mesmo modo que ressoam as almas dos instrumentos musicais, ou, como sublinha Claudia J. Fischer, no prefácio, «envolvendo o corpo e
pondo-o em vibração». (1)
De um modo semelhante, mas distinto, porque o fluxo musical é em primeiro lugar trazido por um ouvido interior e num plano que diríamos «acusmático» (2), a literatura, quando focada sob o
aspecto musical que é intrínseco à sua forma sonora e material, como um fluxo de ritmos
prosódicos, de tons, de pausas, de andamentos e de cadências que compõem uma atmosfera, também pode ser
sentida «como uma matéria que envolve e põe o corpo do leitor em ressonância».
(3)
É neste sentido que Claudia J. Fischer começa por citar o ensaio de Gumbrecht, traduzido
do alemão para o inglês com o título Atmosphere,
Mood, Stimmung, On a Hidden Potential of Literature, e no qual o autor defende, com base na atmosfera (no clima), no tom, no temperamento e portanto na qualidade musical do texto, uma leitura
orientada para a percepção de estados de alma ou ambientes. (4)
Curiosamente, é sintomático que o pai do jovem Joseph
Berglinger, no primeiro conto de Wackenroder, «A estranha vida musical do compositor Joseph Berglinger», seja médico.
Neste conto extraordinário, tanto o pai como o
filho irão, cada um à sua maneira, percorrer a via que vai da paixão ao
desencanto, na perseguição de uma possibilidade de alegria. Porque, se a medicina neste conto surge como a
profissão de alguém que tem uma compaixão genuína pelos sofrimentos do corpo, mas
que, de tanto se dedicar ao conhecimento «das estranhas coisas que no corpo
jazem escondidas», se transformará na vítima de um «veneno oculto» que lhe esfriará
a alma; por sua vez a música, que para o jovem Joseph Berglinger é a única
fonte terrestre de entusiasmo e libertação, surge pelo contraste com a ciência
do pai como uma espécie de medicina da alma. (5)
Na verdade, o conflito entre o pai e o filho na dupla via do
desencanto em que corpo e alma seguem separados pode ser lido como um quase imperceptível drama minimal de um combate mais profundo, o combate do longo, febril, surdo e macerado conflito
entre a alma e o corpo, que marca todo o curso do pensamento judaico-cristão.
«Quando Joseph ia assistir a um grande concerto,
sentava-se num canto e, sem sequer olhar para a esplendorosa assembleia de
espectadores, ficava a ouvir a música com o mesmo recolhimento que teria na
igreja – igualmente quieto e imóvel e com os olhos pregados no chão. Não lhe
escapava o mais ínfimo som, e aquela atenção concentrada fazia com que, no
final, todo ele ficasse alquebrado e exausto. A sua alma, infinitamente
maleável, era toda ela um jogo de sons; era como se, liberta do corpo,
palpitasse mais livremente ou como se o seu corpo se houvesse transformado em
alma.» (6)
O amigo íntimo de Joseph, que escreve o primeiro conto, confrontado com a morte prematura do compositor, coloca, entre outras, esta questão:
«Porque quis o Céu que, ao longo de toda a sua vida, o combate entre o seu etéreo entusiasmo e a miséria desta terra o tornasse tão infeliz, acabando por violentamente rasgar ao meio a sua dupla essência enquanto espírito e corpo?» (7)
E ainda que este conflito não se resolva, a experiência musical implicada nestes contos apresenta-se como um plano de resolução - um plano de imanência.
No
segundo conto de Wackenroder, «Um maravilhoso conto oriental de um santo nu», a música surge inclusivamente como o meio que conduz o «génio desorientado» a
libertar-se da «sua capa terrena» e da sua forma humana de santo nu.
Este génio libertado voa entre o brilho das estrelas, sob a forma de uma
«luminosa figura vaporosa», um corpo voador de braços estendidos e pés
dançantes, depois de ouvir uma canção de amor.
«Ao primeiro som da música e do canto, desvanecera-se a rodopiante roda do santo nu. Aqueles eram os primeiros sons que se faziam sentir naquele ermo, e com eles acalmara o anseio desconhecido, dissolvera-se o feitiço; o génio desorientado fora libertado da sua capa terrena. A forma do santo desaparecera, e uma figura etérea, bela como um anjo, entretecida de leves odores esvoaçou para fora da caverna, estendeu os braços esguios e saudosos em direcção ao céu e, seguindo a música em movimentos de dança, soltou-se do solo e elevou-se nas alturas. Erguida pelos sons suaves e intumescentes das cornetas e do canto, a luminosa figura vaporosa pairou cada vez mais alta nos ares - dançou com uma alegria celeste aqui e ali e, por vezes, sobre as brancas nuvens que pairavam no espaço aéreo. Lançando-se com pés dançantes cada vez mais alta no céu, pôs-se finalmente a voar em espirais serpenteantes por entre as estrelas. Nesse momento, todas as estrelas ressoaram e emitiram um som celeste e cintilante pelo espaço fora, até que o génio se perdeu no infinito firmamento.» (8)
Não deixa de ser espantoso que o contributo de
Wackenroder descubra, logo à cabeça deste conjunto de contos, a música enquanto
plano da transformação evanescente e fortuita do corpo em alma, ou, inversamente, do
génio libertado em corpo dançante e voador.
O que é um plano de imanência?
O fenómeno a que Gumbrecht se refere com recurso à expressão particularmente feliz de Toni Morrisson - «ser tocado como se a partir de dentro» -, sublinhando que nós não ouvimos apenas com o ouvido externo e interno, mas que «ouvir é uma forma complexa de comportamento que envolve todo o corpo», coincide parcialmente com a experimentação que dá corpo à noção de plano de imanência, em Deleuze e Guattari.
«O átomo anda tão depressa como o pensamento.» - Diz-nos Deleuze, citando a Carta de Epicuro a Heródoto.
«O plano de imanência tem duas faces, como Pensamento e como Natureza, como Physis e como Noûs. É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos enredados uns nos outros, dobrados uns nos outros, na medida em que a volta de um deles faz imediatamente começar outro, de tal modo que o plano de imanência não pára de se tecer, qual gigantesco vaivém.» (9)
Ou:
«Precisamente por o plano de imanência ser pré-filosófico, e não operar já com conceitos, ele implica uma espécie de experimentação às cegas, e o seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, de processos patológicos, de experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso. Corre-se para o horizonte, no plano de imanência; regressa-se com os olhos vermelhos, embora sejam apenas os olhos do espírito. (...) É que não pensamos sem nos tornarmos uma outra coisa, qualquer coisa que não pensa, um animal, um vegetal, uma molécula, uma partícula, que regressam ao pensamento e o voltam a lançar.» (10)
Mas é impossível compreender plenamente esta noção sem ler Espinosa e, de igual modo, as duas leituras que Deleuze faz de Espinosa, que infelizmente ainda não estão traduzidas em português: Spinoza, Philosophie Pratique e Spinoza et le Problème de l'Expression.
Neste sentido é particularmente feliz a escolha da expressão de Novalis com que C. J. Fischer intitula o prefácio - Acústica da Alma. (11)
E a imagem do verso que
abre este livro, «da schufst du ihnen Tempel im Gehör» («ali criaste
tu templos no ouvido»), e que remata o primeiro dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke,
escrito em 1923, esta imagem esculpe por dentro da nossa imaginação a visão de uma impressão de ouvir em silêncio, a sensação de uma música sem som:
Uma
árvore subiu. Pura ascensão!
Oh, Orfeu canta! Árvore alta no ouvido!
E tudo se calou. Mas mesmo a suspensão
era aceno, mudança, outro sentido
de começar. Do bosque iam saindo
bichos silentes, de covil ou ninho,
e não era já - viu-se - ardil mesquinho
ou susto que os calava: estavam, vindo,
só para ouvir. Mugido, berro, grito
era pequeno em cada peito aflito.
E onde havia abrigo ou choça escura
de acesso pra aceitar em ânsia pura,
postes que o som pudesse sacudir, -
ali criaste tu templos no ouvir. (12)
Fiquemos pois, perenes românticos, com esta imagem a um tempo visceral e sublime e que tanto serve a música como a literatura, a do mágico canto do Orpheu no soneto de Rilke que é -
árvore alta no ouvido.
(1) FISCHER, Claudia J., «Acústica Musical» (prefácio) in Contos Musicais (Lisboa: Antígona, 2017), pp. 5-6.
(2) Conceito que Patrick Quillier desenvolve a partir de um termo que aparece num poema de Apollinaire, «Acousmate».
(3) Cf. Nota 1.
(4) Traduzido para português com o título
Atmosfera, ambiência, Stimmung. Sobre um potencial oculto da literatura (Rio de Janeiro: PUC, 2014).
(5) WACKENRODER, «A estranha vida musical do compositor Joseph Berglinger»
in Contos Musicais, pp. 30-31.
(6) Id. p. 34 (sublinhados meus).
(7) Id. p. 50.
(8) Id. p. 60.
(9) DELEUZE E GUATTARI, «O plano de imanência»
in O que é a Filosofia?, trad. de Margarida Barahona e António Guerreiro (Lisboa: Presença, 1992), p. 39.
(10) Id. pp. 41-42.
(11)
Contos Musicais,
p. 23 (Notas): Fragmento 1122: «A palavra
Stimmung
remete para correlações musicais da alma. A acústica da alma é ainda um
campo obscuro, mas talvez mais importante. Vibrações harmónicas – e
desarmónicas.»
(12)
Rainer Maria Rilke,
Poemas As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, prefácio, selecção e
tradução de Paulo Quintela (Porto: O Oiro do Dia, 1983), p. 233.