A paixão do infinito
(Anotações sobre Alma de Rapariga de
Adriana Crespo)
“Quero
ter, do infinito, a paixão” (p.49)
1.
É um livro incandescente. As palavras ardem dizendo a vida intensa que
as faz surgir: os conceitos e as imagens ora voam, dançando em êxtase e
deslumbramento, ora entram em queda livre, estilhaçando-se, perdidos. É o
diário dos anos 80-81 de F. de Riverday. A autora do Prefácio, que assina
A., descreve-a como uma rapariga com “alma de índio” e de uma “índole indomável
e selvagem”. E resume assim o diário: “Cume da dor que acompanha a visão
insuportável do absurdo e da impossibilidade de trazer às coisas uma lógica e
um sentido compreensíveis”. É a intensidade desse caos, mas também os
momentos de paixão e júbilo, que incendeiam a escrita de F. de Riverday.
2. O poema que Orlando dedica a
Riverday, seu antigo amor, condensa em poucos versos os
problemas e conflitos do diário. Começa, paradoxalmente, à maneira de Alberto
Caeiro, com o anúncio do que parece vir a ser a calma constatação de uma
evidência: “Olhas para uma árvore e que vês tu, / Riverday, quando olhas para uma árvore?”. Mas logo vem um outro
estilo, mais próximo de Álvaro de Campos e de Pessoa ortónimo, e depois, a
terminar, a placidez de Ricardo Reis. Longe de esclarecer a proliferação
heteronímica que este livro manifesta (surgem personagens como A., Maria do Mar, de Riverday,
Orlando I, António Pizarro e Artur B.), a conjugação de estilos do poema
de Orlando complica o entendimento: porque, se a referência a Pessoa o aproxima
de Adriana Crespo, a maneira como esta se serve dos estilos pessoanos situa-a
diferentemente, marcando a sua autonomia. Por exemplo, o estilo de Caeiro não
traduz a serenidade de um viver imanente à natureza. Pelo contrário, o
desassossego que suscita o absurdo da vida levanta o fantasma de uma
transcendência estranha, o da própria falta de sentido de tudo, que assombra o
diário, do princípio ao fim.
3. As primeiras páginas
assinalam a mudança de nome daquela que passa a chamar-se F. de Riverday,
aos 17 anos. Um acontecimento maior acompanha a adopção do novo nome,
inaugurando a viagem interior e exterior que o livro descreve: a fuga de casa.
“Hoje deixei de estar exilada entre estranhos que falam uma língua estranha.
Fugi de casa.” O que significa esta fuga? A possibilidade de ser múltipla, de
se transformar, de encarnar outras personagens. Ser rapariga é ser móvel e
“inclassificável”. Vai arranjar um
emprego adequado, ajudante de um mágico, num circo. Ser múltipla é ser ela
própria, ser rapariga, não ser “homem” ou “mulher”. “Infelizmente, há muitos
que querem mutilar as raparigas. Homens e mulheres, essas imensas e
ininterruptas hordas de frustrados que percorrem todos os mundos, desde a
Babilónia bíblica até à Índia do séc. XXI”. Começa
então a descrição do processo de transformação do devir: movimentos do corpo,
sensações de dor, corpo de dor e o que com ele se deve fazer - “uma arte de
faquir”. Descrição do devir-outro, devir-animal ou devir-estrela, em combate
com os entraves interiores para soltar as forças de metamorfose. Relato
minucioso, num registo técnico-poético-metafísico.
4. “Onde irei buscar o deus que
mantenha de pé a minha alma?” F. de
Riverday interroga-se sobre a legitimidade do seu próprio desejo de
devir-rapariga, de viver uma positividade que retire ao mundo o seu absurdo,
quando tudo à volta é “sofrimento e horror” (p.19). Perguntar isto equivale a
perguntar pela existência de Deus. A discussão é filosófica e muito
interessante; e inconclusiva. Inconclusiva porque, tendo julgado encontrar a
resposta que lhe permitia dispensar Deus, pergunta: “E depois?” Depois, há
ainda a morte. A discussão sobre a existência de Deus volta
várias vezes, ao longo do diário. A propósito do corpo
e da solidão, Riverday refere
a proximidade e o fosso que liga e separa
o infinito da fé, sempre através de imagens e
situações concretas, que dão uma grande força à sua escrita. Será que a autora é aí, uma escritora “animada pela
filosofia”, ou uma filósofa que gosta de metáforas, de imagens e figuras de
estilo? Ou outro tipo de criadora, com outro tipo de escrita?
5.
Pode parecer que F. de
Riverday se debate apenas contra angústias e conflitos interiores. Mas um outro
dilema, entre o interior (a alma) e o quotidiano exterior atravessa o seu
diário. É que ela trabalha num circo que viaja através da Rússia, e o embate
com as tarefas quotidianas, a rotina e a falsa paz que esconde o sofrimento e a
morte, acaba por se tornar insuportável. “O mundo é demasiado. Demasiado
grande. Demasiado violento. Demasiado caótico. Demasiado indiferente. Demasiado.
O mundo é simplesmente demasiado. Onde está um pedaço de terra?” Descobre-se,
então, que os problemas existenciais e metafísicos procuram resolução num
pedaço de terra, num mundo pequeno. Será “a terra prometida”? Será que o mundo
que salva, o mundo das religiões e da filosofia, se reduz, na cabeça de cada
indivíduo, mesmo nómada ou exilado (“como um judeu”), a um pedaço doméstico de
terra, quintal ou jardim “só para mim”? A pergunta está implícita nas
interrogações de F. de Riverday.
6. Não vou expor o percurso
interior de Riverday, nem o seu
périplo pela Rússia. O devir- rapariga segue um trajecto correspondente ao do
périplo do circo, a viagem pela Rússia é a viagem do devir-rapariga. O mapa da
viagem assinala os sítios geográficos dos acontecimentos existenciais.
Acontecimentos intensivos: os sucessivos trechos do livro, correspondentes às
diferentes datas do diário, parecendo desconexos, marcam os picos de
intensidade, de densidade, e de distensão e atonia, que irrompem aleatoriamente
na vida da rapariga. Mapa de funcionamento de intensidades, isto é, diagrama. Toda a história narrada leva o leitor a
percorrer este diagrama, com os sobressaltos, o pânico, os anseios e os voos
extáticos que o fazem pulsar. E o
ritmo que os entrelaça: a dança não é só um tema recorrente da prosa de Riverday, mas impulsiona-a constantemente.
Os jogos com o corpo compõem coreografias, “a escrita é a minha dança”. “Tenho um motor chamado alma. / Um
combustível chamado desejo”.
7. Abstenho-me de comentar as
ideias e argumentos (porque o texto fervilha de argumentos) com que a autora
descreve os conflitos da sua “alma de rapariga”. A sua riqueza e número
impedem-me de o fazer. Limitar-me-ei
a analisar brevemente um problema que atravessa todo o texto.
Logo no início
do poema introdutório, com aquele estilo sem estilo característico de Alberto
Caeiro, Orlando dirige-se a Riverday assim:
“Olhas para uma árvore e que vês tu,
Riverday, quando olhas
para uma árvore?
Não
olhes demais porque assim
ficarás presa por um feitiço
ao
novelo de tudo o que pensas
quando olhas para uma árvore”
Novelo infinito de
pensamentos, sempre em excesso relativamente ao mundo e às sensações. Se
evocarmos os versos do Guardador de
Rebanhos em que Caeiro diz que os seus pensamentos “são todos sensações”
(poema IX), apercebemo-nos do que separa Riverday do poeta nominalista. Como
ela própria escreve, “ao contrário de Pessoa, a consciência não me aflige,
liberta-me” (p.105). (consciência e pensamento identificam-se aqui). Porque é
que a liberta?
Essencialmente,
porque os pensamentos, para Riverday, longe
de matar as sensações, intensificam-nas. Pensar é vibrar intensamente.
Poder-se-ia afirmar que, enquanto Caeiro pensa
com os sentidos, rejeitando o pensamento abstracto que se separa da vida
como uma doença, Riverday sente com o pensamento. Seria exacto, se o regime do
sentir em Riverday não fosse mais complexo. Por exemplo, as sensações podem
desprender-se dos pensamentos, entrando num regime de angústia e desespero,
como na experiência da náusea, náusea de “viver em tudo a malha do excesso, […]
de não poder mais habitar aqui”, de “suportar o corpo”: “a ansiedade acumulada
desceu dos pensamentos para a carne, desceu das emoções para a pele...e cada
miligrama da pele… está contaminado pelo medo, a dor
sem nome, a dor do indefinido.”
Vibrar com o pensamento tem, pois, os seus
riscos. Se nasce um dilema, ou um conflito entre ideias, o sentir é puxado para
duas direcções contrárias, espartilha-se, dilacera-se e o sofrimento irrompe,
insuportável. O drama das sensações vem então do drama do pensamento. Mas
quando Riverday entra na música de Bach ou num filme de Tarkowski, o afecto
parece comandar o pensamento e os dois formam uma corrente única de
intensidades, para além de qualquer conflito existencial.
O maior
dilema não virá, afinal, da oposição entre estes dois regimes do pensamento e
do sentir? No primeiro, os grandes conceitos absorvem e transformam a
afectividade, que reenviam depois; no segundo, o afecto estende-se ao corpo e
ao pensamento para formar um plano único, sem dilemas nem sofrimentos. Ora,
pode acontecer – e muitas vezes acontece, em pensadores e poetas - que o
primeiro regime se rebata sobre o segundo, o engula e o reduza a um dos polos
de um dilema mais vasto: que vale dançar com Shostakovitch, voar na mística do
sexo, que vale o devir-rapariga e o júbilo de sentir pensando, se isso não dura
senão um instante, se somos finitos e morremos? “Porque é que nos cansamos e
morremos, se sentimos que somos eternos?” “Porque é que os nossos ossos não
aguentam para sempre o nosso corpo suspenso e andante, nem a pele, nem a carne,
nem nada do que é real e possível de ser tocado em nós? […] Que triste!...Ter
um limite!…” (p.87)
Olha-se
agora, de fora, e de longe, para o plano das fortes intensidades do devir, e,
em nome da finitude e da morte, diminui-se-lhes o teor ontológico. Fazendo-se
mais vastos do que a vida, os grandes conceitos abstractos mataram as
sensações. Criou-se um ponto de vista com que se olha para o plano de
Tarkowski, para a alegria de Shostakovitch, que não admitiam pontos de vista.
Ponto de vista da finitude que pára e dissolve o movimento do infinito. A terra
tornou-se um deserto, o deserto de Messiaen onde tudo fala “numa língua
estrangeira”, onde Riverday não passa de “um triste animal a quem roubaram a
sua terra”.
Será esta
conclusão uma fatalidade do pensamento ou da paixão do infinito, uma ilusão
armadilhada que leva o excesso das intensidades a voltar-se contra si próprio
numa suprema auto-condenação? Terá sido por isso que Riverday acabou por se
suicidar?
8.
Parece impossível não encarar este suicídio como o desfecho lógico do
diário, até porque o último capítulo quase o anuncia. O suicídio de Riverday
muda a percepção que a autora do livro procura induzir no leitor, a saber que Alma de Rapariga é o título só de um
diário. Na verdade, é o título de toda a série de textos, do Prefácio de A.
mais o poema de Orlando mais o manuscrito de Riverday.
Porque o suicídio deixa um branco: entre a última data do diário e a
data (desconhecida) da redacção do Prefácio passou-se um tempo da vida de
Riverday de que se desconhecem os acontecimentos, a não ser, precisamente, o suicídio. Ao assinalá-lo, A. prolonga o
texto do diário, combina-o com o suicídio e leva o leitor a perguntar: “Terá sido por tudo o que nos é relatado e
por tudo o que isso revela da “alma” de Riverday que ela se matou?” Ora, o
Prefácio continua o diário de três
maneiras, pelo menos: evocando um outro suicídio que sucede ao de Riverday, o de Maria do Mar, descrevendo
o amor desta última e de Orlando no seu fracasso em salvar Riverday, e inscrevendo-se ela mesma, A.,
na senda da autora do diário. Comparem-se apenas estas linhas, “E a F.
de Riverday, sim, fez esse
caminho de estacas e lianas suspensas sobre os abismos para entrar no caos, mas
não cuidou de salvar o caminho de regresso”, com o que escreve A., uns
parágrafos mais adiante, falando dela própria: “Em cima da mesa aposto todo o
meu pecúlio. Arrisco tudo. Até hoje este caminho de estacas, como as
insignificantes ervas dos campos...”, etc. O caminho de A., na escrita de A.,
continua o diário de Riverday, na
escrita de Riverday. A. é Riverday, como o são Maria do Mar e
Orlando, e os outros personagens referidos. Afinal, o Prefácio é todo ele
dedicado a mostrar como Maria do Mar, Orlando
e A. estão estreitamente implicados na vida de F. de Riverday. E o
livro, Alma de Rapariga, compreende
os escritos de todos estes autores.
Vemos como o
suicídio da diarista constitui um acontecimento, exterior ao diário, que vem
condicionar intimamente a sua leitura. É a rede complexa da heteronímia de
Adriana Crespo que se enovela (e se desvela) assim, imperceptivelmente.
9.
Uma última nota sobre os desenhos que acompanham o diário: o seu
encanto vem certamente da sua leveza e simplicidade. Não ilustram nem comentam os conteúdos dos capítulos, instauram,
num outro regime que não o da escrita, o mesmo ritmo ágil do voo infinito que
arrebata Riverday para fora de si mesma.
José
Gil
Oeiras, Palácio do Egipto
Apresentação do livro Alma de Rapariga
28-10-2019