A propósito de Proust e de um saco de praia
Fragmento 149
Penso
nos mil gestos que fazemos para nos termos de pé, para sair à rua
de roupa limpa e cara lavada.
Penso nos gestos ínfimos, incógnitos, anónimos e multiplicados.
Penso nos gestos ínfimos, incógnitos, anónimos e multiplicados.
Olho para o meu saco de praia azul às bolas brancas, que vai
ficando velhinho e desfiado.
«Como seria o meu saco de praia há dez anos?»
«Como seria o meu saco de praia há dez anos?»
Já não me lembro desse saco de praia.
«E se de repente me aparecessem
nas mãos esses vestígios de repente vivos de ter existido há dez, há vinte, há
trinta anos, como seria?...»
Lembro-me da memória involuntária de Proust e sei
com a pele que se um desses sacos estivesse nas minhas mãos toda a sensação de
existir nesses anos correria para mim como uma onda enorme, uma avalanche ou
uma derrocada.
«Porque é que só a ideia de aceder ao vivo dessa
memória me traz tanta dor?...»
A minha alegria é exactamente como um
jardim que floresce sobre os mortos.
Talvez uma arte involuntária de esquecer, ou de viver só por hoje, ou de
sentir como eterna novidade a incrível surpresa das
cores.
Porque só a ideia de poder recordar a sensação real de ter
existido nessas décadas me traz como que uma avalanche da dor de andar pelo
mundo a existir... sempre incompleta.
Por entre a espuma dos dias e dos gestos
incógnitos das obrigações e da sobrevivência está a sensação de existir de
passagem e sempre a caminho de outra coisa, sempre um pouco aquém ou além, promessa nunca alcançada, Jerusalém celeste ou terra prometida que busco como um antigo judeu, uma judia de alma.
Sobre uma confissão
Sonho LXXXIII
Estavam várias pessoas à mesa, numa grande mesa
cheia de gente cuja companhia era agradável para a Francisca.
A seu lado, alguém que parecia querer impressioná-la falava de uma produção de vinhos requintadíssimos, como se isso fosse uma coisa
realmente digna de interesse.
Ela ria-se, bastante divertida.
Dizia que isso pouco lhe
interessava, uma vez que era alcoólica e que tencionava fazer tudo o que
estivesse ao seu alcance para se manter sóbria até morrer.
As pessoas ficavam tão desconcertadas e com uma
expressão de tal choque nos rostos que ela escorregava pela cadeira e ficava
debaixo da mesa.
A mesa era interessante lá por baixo, por causa da
toalha escura. A toalha era pesada e comprida e tocava no chão forrado de
alcatifa, enquanto uma penumbra esverdeada e suave se coava através dela.
Além disso, era curioso ver as pernas e os pés das
pessoas, calçados com os sapatos.
Havia uma ou duas pessoas que descalçavam um dos pés,
ou que tinham um pé meio fora do sapato.
Parecia que estava dentro de uma tenda e, por causa disso, a
Francisca sentia-se como uma criança, protegida, escondida e entusiasmada por estar dentro de uma habitação tão engraçada.
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