Sonho CCVII
Era uma empresa de sucesso, com uma publicidade desleal e perigosa.
No passeio, em frente da porta, ardia uma lamparina sobre um suporte, com uma chama azul e difusa, que atraía a atenção de todos os que por ali passavam.
A lamparina, como estava à altura do estômago de um adulto, pegava fogo às crianças e aos incautos que por ali andavam.
Quando isso acontecia e algum distraído era apanhado era de imediato lançado o alarme e vinham os bombeiros em grande velocidade.
A Maria do Mar, parada no passeio, viu uma criança com o cabelo na parte de trás da cabeça a arder, enquanto todos gritavam. Segundo aquela gente, porém, tudo acabou em bem, e o homem que salvou a criança em chamas foi considerado um herói.
Não foi motivo para desligarem a lamparina, pois tudo isto chamava ainda mais a atenção de todas as pessoas e aumentava o fascínio pela lamparina e pela porta da empresa e, consequentemente, por tudo o que estava ligado àquela empresa.
Como precisava desesperadamente de trabalho, a Maria do Mar decidiu vender a alma ao diabo.
Dentro da empresa havia um homem que a magnetizou com a sua sensualidade insinuante.
Devia ter os seus cinquenta anos.
Era qualquer coisa entre as linhas do seu nariz e dos seus olhos azuis, frios como os de um lince, mas intermitentemente bem humorados. E qualquer coisa no seu corpo um pouco atarracado que a prendia como se fosse um íman.
A Maria do Mar envolveu-se com o homem e abraçaram-se os dois numa espreguiçadeira à beira-mar.
Como era Inverno, estavam vestidos, e a Maria do Mar apercebeu-se que não queria prosseguir.
Ficara com um ataque de acne, como o seu corpo tivesse decidido falar o que lhe ficara entalado na alma.
- E esta?... - pensou a Maria do Mar, observando com desgosto a sua cara no espelho. - Parece que tenho treze anos.
Quando regressou, e apesar de terem passado menos de cinco minutos, o homem estava com outra mulher e tinham cada um uma criança entre as pernas.
Como a Maria do Mar levava uma maçã na mão, ele, vaidoso, fez uma expressão enfastiada.
- Não!... Não quero essa maçã!...
- Parvalhão. - pensava a Maria do Mar, observando tudo minuciosamente.
- Mal sabes tu que esta maçã não é para ti. É para mim.
E deu uma dentada sonora na maçã, que era bem rija.
- Devem ter isto em comum. - pensou a Maria do Mar, olhando para ambos com detalhe.
- Uma criança entre as pernas. Mas que raio tenho eu em comum com este homem?
De regresso à casa de banho, a Maria do Mar colocou a cabeça debaixo da torneira.
A sua cabeleireira fizera-lhe um corte horrível, abominável. O seu cabelo estava empastado com uma massa insuportável de qualquer coisa que a Maria do Mar não fazia ideia o que fosse.
Esfregou a cabeça com espuma até se ver livre de tudo aquilo e, quando terminou, cortou o cabelo da maneira mais selvagem que foi capaz.
Pelo menos agora que parecia saída de um presídio ou de um manicómio sentia-se mais de acordo consigo própria.
A Maria do Mar pegou no carro e, por acaso, encontrou aquele mesmo homem que a traíra, andando a pé, cosido com um muro que ladeava a estrada.
Trepou por ela um impulso de crueldade.
Encostou o carro ao muro como se fosse esmagar aquele homem, o dono da empresa.
Mas isto não durou muito tempo.
A expressão de pânico na cara do homem de súbito petrificou o seu instinto de crueldade.
Parou o carro e abriu-lhe a porta:
- Queres uma boleia?
Agora já se tinha curado do acne e divertia-se intimamente com aquela expressão entre o terror e a perplexidade que flutuava na cara do homem.
O homem entrou, pois não tinha outro remédio.
A Maria do Mar tencionava deixá-lo mais adiante, num sítio decente.
- Como a carne é fraca!... - pensava ela.
Porque ao mirá-lo de alto abaixo podia sentir os olhos a ferver e, entre as pernas, um calor que a derretia e se propagava de alto a baixo.
O desejo circulava devagar e aos «ésses» por dentro do corpo, como uma serpente.
Mas como poderia deitar-se com alguém que desprezava?
Abriu a porta, para que o homem saísse.
O homem olhava-a ainda com aquela expressão entre o medo e o desconcerto enquanto a Maria do Mar pensava, com mais humor que nostalgia:
- Pois é. Nunca nos conheceremos.