Hoje a morte
Chantilly
Sonho CCC
É nesta paisagem
Porquê? Pergunto ao coração gelado.
Há um fulgor que quero neste ir
Alma incógnita. Em zona interdita
Alma incógnita. Em zona interdita
nasce o amor que podia ter sido
Soneto #6
Antecâmara
Sonho CCXCIX
Naqueles dias que então corriam, tudo parecia estar mal e tomar a figura de uma tragédia, mas a partir do momento em que lhe apontaram a ponta do fuzil à testa, bem no meio dos olhos, tudo isso adquiriu de repente um aspecto de paz e felicidade excelsas. Foi forçada a recuar, diante da arma, divisão a divisão, andando de costas, até que se encontrou numa daquelas salas imaculadamente brancas e com um vidro de observação, como se vêem nos filmes americanos, no interior de certos asilos que são também estabelecimentos prisionais. Sabia que estava condenada à morte, mas tudo o que não queria era morrer. Ficou ali, semi-despida, e pôde verificar que atrás do vidro estava um dos três amores da sua vida. Seria possível que ele a tivesse condenado a estar ali, que fosse responsável pelo exército e pelos homens de baioneta? Parecia que não, afinal. Observando melhor, podia verificar que estava inconsciente, semi-despido e como se estivesse entalado entre paredes. Seria R., D. ou F.? Não conseguia distinguir as feições do seu rosto, que eram quase desconhecidas, mas, ainda assim, infinitamente familiares. Como era possível, se o rosto era tão nítido, tão belo, tão jovem e tão definido? Em que tempo estariam agora? Teriam já morrido? Seria a vida depois da morte? Não. Não podia dizer quem fosse. Uma angústia difusa e imensa invadiu-lhe o coração, uma dor que parecia espraiar-se para além das galáxias. Como suportá-la? Com que grito? Afinal ele era louco, tinham-lhe vestido um colete de forças. Estava ali, como um bebé no ventre da mãe, todo encolhido, e parecia prestes a nascer. Deus queira que nascesse, pensava ela, que nascesse rapidamente. Não suportava vê-lo ali. E também não queria morrer. Toda a angústia lhe parecia agora suave e mesmo alegre, comparada com a antecâmara da morte.
Minha casa, minha morte
Regressara a casa, mas a casa estava irreconhecível. Que tinha acontecido? As máquinas tinham sido levadas. As paredes, anteriormente brilhantes e sem manchas, estavam vandalizadas. Faltavam cadeiras na mesa de jantar. Onde estavam as cadeiras?... Na rua?... E porquê?... Porquê tantos estragos, tanta destruição?... As imaculadas portas lacadas de branco, todas riscadas e lascadas, as flores arrancadas, a roupa dos armários espalhada pelo chão, os lençóis rasgados, as loiças partidas... olhava tudo aquilo sem sequer poder verter uma lágrima. Porque cada coisa na delicada casa era um gesto, um gesto de pensamento, de tempo e de amor... Como reconstruir tudo aquilo? Quanto tempo? E o ânimo? Será que haveria ainda força e ânimo para recomeçar tudo de novo? Tudo de novo outra vez?... Ou haveria antes um insuperável cansaço e, para sempre, uma ausência de esperança?... Como parecia de repente tão agradável e suave a morte. Como parecia tão doce e suave poder não sentir, não pensar, não ter nenhuma ideia de futuro. Suave nada. Parecia de repente tão bom simplesmente uma coisa, essa coisa indistinta e suavíssima, sem consciência nem sensibilidade: poder desaparecer como pequena chama que ardesse no escuro e de súbito fosse soprada e consigo levasse a luz para sempre, para todo o sempre.
Breve
Nesta capelinha no Bom Sucesso foi onde fiz a minha primeira comunhão, com rosas brancas nos totós (e no raminho) e umas sandálias de verniz muito apertadas. As rosas eram do jardim da minha avó, as suas flores preferidas. As sandálias eram da minha prima Joana. O vestido era especialmente bonito. Mandaram-no fazer em piquê e bordado inglês, com pequeninas mangas de balão e um laço atrás, lembro-me bem. O meu pai disse-me que eu tinha deitado a língua de fora ao padre. Era bondoso e delicado, aquele padre, o que se vê bem nesta fotografia. Só tenho boas recordações dessa experiência infantil. Ao meu lado está a Sofia, que veio a ser campeã nacional de ténis, a olhar com muita atenção para tudo aquilo. Eu e o meu irmão, felizes, sempre a pensar nas próximas brincadeiras e disparates que éramos pródigos em inventar e que punham à prova a paciência de alguns. Mas foi a minha mãe quem me ensinou a rezar. Todas as noites, em pequena, enfaixava-me numa manta à maneira russa e rezava comigo. Que bom que era e que grande força me deu, na verdade. Sou daquela espécie de pessoas que não podem viver sem Deus. Ou se consomem e dissipam, ou definham... ou se suicidam, os desta espécie. Talvez por isto ame tanto Dostoievski. Não faço parte de nenhuma religião. Deve ser reconfortante ter uma fé comunitária e partilhada, mas nunca me foi possível aceitar nenhuma espécie de dogma, nenhuma narrativa, nenhum movimento geral. Quando tinha nove anos e vi as crianças durante a fome da Etiópia com os olhos cobertos de moscas, na televisão, decidi que não havia Deus. Tive e tenho muitas questões, muitas angústias, conflitos e aporias, muitos becos sem saída, muitos desastres, por assim dizer. O meu caminho não foi e não é a direito. E tenho um horror visceral a clichés, ideias e crenças que parecem ser aceites sem sentido crítico e que avançam nas massas com uma força cega, mecânica, porque observo que este tipo de pensamento pode produzir sofrimento, miséria e, em último grau, loucura. Quanto a isto, acho que a coisa que mais falta é indignação. Poderia escrever longamente a este propósito, mas quero só falar de uma coisa que são as sensações. Certas sensações extraordinárias e maravilhosas, inexplicáveis e magníficas. No esplendor, na natureza toda e nos rostos, tantas vezes sinto simplesmente uma coisa: Deus. Estou bem numa igreja, como à sombra de uma árvore ou no topo de uma montanha, olhando em volta.
Orações a um deus desconhecido
Deus, dá-me força na adversidade. Traz-me paz. Ajuda-me a aceitar a dor e a alegria com a mesma humildade. Ajuda-me a aceitar os desígnios do universo, que não conheço, mas que talvez venha um dia a conhecer. Qualquer que seja o meu destino, dá-me força e dignidade. E que eu possa dar hoje ao mundo qualquer coisa de bom.
Sobre o suicídio
Marx escreve um pequeno opúsculo sobre o suicídio, a partir das notas de Peuchet (1758-1830), um ex-arquivista policial com uma trajectória de vida particular. Este texto em português peca por não separar os comentários de Marx das citações de Peuchet. Mas é possível fazê-lo, por exemplo, nos arquivos online dos trabalhos de Marx em inglês. O que me fascina, na análise de Marx, que considero, como em tantos outros aspectos, visionária, é que ele não aborda o suicídio do ponto de vista de um sintoma da saúde mental, como hoje em dia é um chavão acontecer, mas como produto de um conflito insanável de forças que se estabelecem entre a sociedade, a família e uma pessoa, ou um conjunto de pessoas. Gostaria de conseguir pensar sobre o suicídio, antes de Setembro, escrevendo um "pequeno ensaio sobre a estranheza," a partir da terceira parte de uma frase que ali aparece: «A opinião é muito segmentada por via do isolamento dos homens; é ignorante demais, corrompida demais, porque cada um é estranho de si mesmo e todos são estranhos entre si.»
Parafusos e arremessos
As obras em casa de Anaïs D. não estavam a correr nada bem. Tinham pintado o tecto com a cor errada. Tinham feito um trabalho de relevo no estuque que, para além de ser dispendiosíssimo, era de um mau gosto insuperável. E para quê tudo aquilo? Anaïs D. mandou chamar o chefe da obra, que trazia toda a equipa e inclusivamente o engenheiro. "O que é isto?" - perguntou Anaïs, apontando para uma máquina suspensa perto do tecto. "Um ar condicionado?" Não, não. Nada disso. Aquilo era uma nova máquina da polícia, dada a crise sanitária destes novos tempos, apenas uma pequena máquina de vigilância, bom, não assim tão pequena, mas também não era maior que um ar condicionado, o que era bem verdade, certo? - porque agora saíra uma nova lei e, sempre que houvesse oportunidade, quer dizer, sempre que houvesse obras nas casas e nas instituições, havia que colocar estas máquinas, agora muito úteis e indispensáveis, disso não havia sombra de dúvida, em prol da saúde pública, da segurança sanitária e da sanidade em geral. Não era um ar condicionado, não tinha qualquer efeito sobre a atmosfera da casa, isso não. A sua única função seria vigiar Anaïs, para zelar pela segurança de todos, o que certamente deixaria Anaïs muito feliz, segundo as estimativas de quase toda a gente e principalmente segundo as estimativas de quem tinha decidido assim. A Anaïs que até aí estivera apenas preocupada em corrigir a cor do tecto, demolir o trabalho do estuque e evitar que sujassem o chão com aqueles terríveis sapatos, foi tomada por um tal acesso de fúria que deu por si a dizer: "Eu mesma vou buscar a minha chave de parafusos, eu mesma desmonto esta máquina e verão como irá voar pela janela, num ápice!" Com certeza o seu aspecto seria tão ameaçador como aquele que descrevem os escritores gregos quando consideravam que a fúria era um dom dos deuses. É até possível que lançasse chispas pelos olhos ou que tivesse duplicado de tamanho, de forças ou de velocidade, segundo descrevem esses mesmos escritores. Já estava de chave de parafusos em punho no topo do escadote e aqueles homens todos corriam como ratos pela casa enquanto suplicavam coisas sem nexo nenhum, dizendo que eles mesmos desmontariam a máquina, que isso não era trabalho para uma senhora, que ideia, fazer voar um aparelho tão caro pela janela, e se acertasse em alguém? Não havia nada a fazer, porém. Quando os comboios são colocados em marcha, já não podem parar de repente. Há aqueles que parecem habitar a superfície da vida, com a tranquilidade e a leveza aparente dos pássaros. E há os outros que só sabem cair de cabeça para baixo e pés para cima nos abismos ou então voar entre as estrelas até à liquefacção. Para os primeiros, muitas coisas, mesmo as mais inesperadas, são pretexto para um belo riso, solto e leve. Parecem desconhecer que se pode morrer com um excesso de intensidade, porque as cordas da alma não aguentam ser esticadas para além do limite, e, se por acaso alguma coisa deste género lhes passa pela cabeça como sendo real e existente, a sua reacção é de estranheza. Na verdade, parecem estar sempre num ponto suavemente elástico, tendido e afinado, essas cordas, e desse modo compor aquela dourada mediocridade que pela sua natureza amena e alegre se torna tão atraente e desejável. Mas talvez tudo isto seja apenas a ilusão dourada de quem habita a margem oposta desse plano. Esses, pelo contrário, procuram apenas equilibrar-se nos loups da intensidade como os acrobatas improváveis de um circo atómico ou de uma arena invisível, desdobrada em dimensões incompossíveis e paralelas. E quando riem, a sua leveza não é da mesma qualidade, guarda sempre um grão luciferino. Mas agora tinha deixado de existir a fisioterapia. Nada disso. O que existia agora era a viu-terapia. Uma terapia do que fora visto. Assim, o que fora visto uma vez de uma certa maneira ou de uma certa perspectiva já não poderia tornar a ser visto dessa maneira nem dessa perspectiva. De igual modo, e em prol da sanidade, tratava-se de uma reabilitação da visão. Não da visão do presente, claro. Mas daquilo que no presente sobrava do que em tempos fora visto no passado.
O inferno, a fúria e a ternura
Havia agora um novo tipo de arte, a que chamavam ainda escultura, mas seria realmente escultura? Não era bem uma performance e também não era propriamente uma instalação, embora se aproximasse mais desse segundo conceito do que do primeiro. Como fazer uma descrição satisfatória do que se tratava realmente? Andy, a autora famosíssima de tal novidade e que Anaïs D. conhecia desde a adolescência, tinha agora os cabelos frisados de um modo tão selvagem que parecia ter apanhado um choque eléctrico, mas isso dava-lhe uma graça especial e ia melhor com a sua personalidade alegre e irreverente. Os velhos cabelos ralos muito lisos e colados ao crânio, que lhe davam um ar infeliz e tristemente obediente, tinham passado à história e ainda bem, pensava Anaïs. A escultura era uma sala, uma sala enorme, toda a preto e branco, com volumes inesperados, paralelepípedos, cubos, pirâmides, formas como aquelas que apareciam no antigo jogo do Tetris, todas de tamanhos muito diferentes, sem qualquer escala entre si, e que criavam pequenos recantos por onde se andava, como as paredes de um labirinto. No chão, nas paredes e no tecto também havia quadrados a preto e branco sem escala e muito irregulares, também, e essa ausência de correlação entre os volumes, essa ausência de referência e de escala, digamos assim, fazia com que nos sentíssemos no meio do infinito, totalmente perdidos. O único consolo estava naqueles recantos criados pelos volumes que transmitiam uma pequena sensação de conforto, como de terra ou de casa. Porém, de repente e sem qualquer aviso todos esses volumes foram rebatidos no chão (ou absorvidos, não sabemos) e todos nós, os parcos visitantes, ficámos ali sobre aquele plano a preto e branco e onde os mesmos quadrados sem referência nem escala se replicavam no chão, nas paredes e no tecto. Não há como descrever a angústia indizível nem a vulnerabilidade absoluta que podíamos sentir. Não havia qualquer refúgio, qualquer luta a encetar, qualquer desafio com que entreter a dor e o tempo, nenhum recanto ou abrigo. Nada. Só aquela nudez absoluta diante do infinito. Anaïs D. saiu dali a correr, porque certas intensidades só podem sentir-se durante espaços muito curtos de tempo ou então com recurso aos chamados alteradores de consciência, não apenas o álcool e as drogas medicinais ou ilegais, mas muitos outros que como sabemos são inúmeros e tão engenhosos como fatais. Anaïs cruzou-se com P., que saía de uma casa de banho no museu, olhando para o telemóvel. Talvez porque tivesse sido objecto de uma experiência limite, Anaïs naquele momento olhou para P. e soube imediatamente que ele ia suicidar-se. Tinha de fazer qualquer coisa, tinha de fazer qualquer coisa com a maior urgência, mas nem sequer conhecia P. muito bem e não lhe ocorria nada que pudesse fazer. Sendo assim, e como não sabia o que fazer, Anaïs... pôs-se também a olhar para o telemóvel. As coisas que fazemos!... Tinha uma dor horrível no peito e na garganta, como se estivesse a ser estrangulada por um torniquete, e não conseguia pronunciar nem sequer uma palavra. Queria dizer-lhe: «Já que provámos o cálice, vamos bebê-lo até ao fim, certo?» - como Ivan, nos Irmãos Karamásov. Mas nada lhe saía. P. caminhava para longe de si, certamente em direcção ao seu absurdo e horrível destino, mais absurdo ainda que nascer e morrer sem saber para quê, pelo menos era o que lhe parecia naquele preciso momento. A isto talvez pudesse chamar-se um excesso de absurdo. Qualquer coisa ainda mais absurda que o absurdo. E, tal como o excesso de sofrimento, algo de gratuito e que é preciso evitar a todo o custo, segundo uma ética intuitiva da preservação e da delicadeza. O que Anaïs sentia no meio daquela clarividência mal-vinda era uma impossibilidade absoluta, uma tortura certamente maior que uma passagem pelas chamas do inferno. Aliás, isso mesmo que ela sentia é que era o próprio inferno, esta dor e a impotência de saber que é necessário agir e não ter como. Então Anaïs foi tomada por uma fúria tão avassaladora que teve o desejo de desmantelar o universo inteiro e que não sobrasse nada, absolutamente nada, nem sequer ela própria. São assim radicalmente paradoxais as paixões humanas, que nos arrastam em menos de um segundo para os dois lados opostos de uma mesma realidade. Alguns segundos antes Anaïs queria apenas salvar P. e, uns meros segundos depois, dispunha-se a fazer aquilo mesmo que a horrorizava. Ainda bem que a fúria não tem um poder imediato em si mesma. De outro modo seria indubitável que o universo se extinguiria inumeráveis vezes, numa velocidade imprevisível. Mas Anaïs quase imediatamente se lembrou das flores, das ervas, das estrelas, das cores, dos animais, das crianças, dos velhos e de tantas coisas que lhe inspiravam uma ternura infinita, uma ternura ao mesmo tempo visceral e abstracta, física e transcendental, e ficou-se ali, olhando P. que partia de costas, imóvel e de braços caídos, sem mais nada que não fosse aquela perplexidade insuportável e suspensa do tempo como um balão de festa, girando na brisa.
Cadernos de notas - diálogos - recortes - insignificâncias (coisas ouvidas aqui e ali)
1.
(Isabel e A. na praia)
- Olha, está-se tão bem. Passaram duas horas e nem se deu por nada. São onze e onze.
- Onze e onze!... Lá está!...
- Lá está o quê?
- Esses números, perseguem-me por toda a parte, toda a minha vida, toda a minha vida.
- Ah... é curioso... a mim também. Onze e onze, vinte e dois e vinte e dois, doze e vinte um, catorze e quarenta e um... a toda a hora, a toda hora.
- Não. A mim é só onze e onze. Onze e onze. E isso tem um significado, sabias?
- Ah sim? Qual?
- Não sei.
- Não sabes?
- Sei que existe um significado, mas não sei qual é.
- Que desilusão. E não te lembras de nada?
- Nada.
- Quem me dera saber!
- Não vale a pena. Acreditas que, se alguém julga que sabe, saberá?
2.
(P. e M., numa reunião de trabalho, dispondo na mesa os seus computadores portáteis)
- Olha, olha, não é que têm dois computadores iguais? - reparou um colega.
- Oh! Oh! Pois é!
- E aposto que a M. também não sabe que o computador tem dois discos.
- Dois discos? A que propósito?
- Tem este, mais rápido, e este, mecânico, mais lento. Exacto. Está vazio. Como o da P. Não sabias que tinhas dois discos?
- Pois não.
- Ahahah!...
- Olha - disse a P. - e os telemóveis, será que também são iguais?
- Olha pois são!... Iguais!...
- Da mesma marca, da mesma série e da mesma cor.
- Iguaizinhos.
- E nós estávamos bem longe de reparar nisso...
- Caramba... que havemos ainda de descobrir?...
- Não eras tu que tinhas a lua em Capricórnio e o ascendente em Leão?
- Era.
- Igual.
- E isso dá dois computadores e dois telemóveis iguaizinhos, na vida prática?
- E sabe-se lá mais o quê...
Teorias, flores fúnebres, amores e desertos
Volvos e piscinas
Carros e pilecas
Suportar os privilégios
Sobre o esforço que implica voar
Trégua
Corpo - matéria e fibra de universo
Soneto #4
Soneto #3
Se pudéssemos avançar no tempo das nossas vidas e, quem sabe, usar um chapelinho com véu
Crianças 15
António Pizarro - Ínfimas notas sobre a morte, para uma outra escrita
Cadernos de Bernfried Järvi - de Rui Manuel Amaral
Haveria muito a dizer sobre este livro. Sobre os retratos minuciosos e surpreendentes da atmosfera, tão vivos como a preciosa enumeração da lista de cores na citação de Van Gogh; sobre as descrições do pó e a sua articulação com os relatos de sonhos. Muito haveria a dizer sobre Pagreus, Milo, Helmut, Else, Marcus, Heike, Vanhelle e todos os habitantes do café que flutuam numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre pálido - e sobre o seu desespero, humor ácido, niilismo, extravagância e fervor - a que a escorreita prosódia teatral faz juz.
Mas ocorre-nos um pequeno artigo de Deleuze, intitulado "A imanência: uma vida...", datado de Setembro de 1995. Um curto texto de quatro páginas e o último publicado pelo autor antes do seu suicídio. Neste texto, Deleuze procura explicar o conceito de campo transcendental, que se distingue da experiência (na medida em que não reenvia a um objecto, nem pertence a um sujeito). Esta formulação, que pode parecer opaca, descreve algo de vivo, concreto e real, ainda que difícil ou talvez impossível de pensar. Não cabe aqui a explicação minuciosa destes termos que implicam uma passagem detalhada por Espinosa e pelo conceito de representação empírica. Mas um campo transcendental, entendido como puro plano de imanência, não tem forma mais directa de ser compreendido do que percebendo que a pura imanência é uma vida - "uma vida, e nada mais. Uma vida como imanência absoluta, potência, beatitude completas", diz-nos Deleuze. E o exemplo vem de Dickens, do terceiro capítulo do romance Amigo Comum:
O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens descreveu o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como índice do transcendental. Um crápula, um mau tipo desprezado por todos, é trazido às portas da morte e eis que aqueles que o cuidam manifestam uma espécie de impressão, de respeito, de amor pelo mais pequeno sinal de vida do moribundo. Toda a gente se empenha em salvá-lo, ao ponto de, no mais fundo do seu coma, o vilão sentir qualquer coisa de suave a penetrá-lo. Mas, à medida que regressa à vida, os seus salvadores tornam-se mais frios e ele recupera toda a sua grosseria e mesquinhez. Entre a sua vida e a sua morte, há um momento que não é mais do que uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal e contudo singular, que liberta um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, quer dizer, da objectividade e da subjectividade do que acontece. «Homo tantum», do qual toda a gente se compadece e que alcança uma espécie de beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, porque apenas o sujeito que a incarna no meio das coisas a torna boa ou má. A vida de uma tal individualidade desaparece em proveito da vida singular imanente de um homem que já não tem nome, se bem que não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida... Não se deve conter uma vida nesse simples momento onde a vida individual defronta a morte universal. Uma vida está por todo o lado, em todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objectos vividos (...)*
Custa-nos interromper a citação, quando este texto extraordinário de Deleuze daria ele mesmo para escrever muitas páginas, a propósito de cada uma das suas frases. É como uma grande árvore de cujos ramos podem nascer muitos frutos. Precisamente no reconhecimento desse homo tantum, no encontro com esse homem apenas (homem só), porque é que uma espécie particular de amor acontece? O exemplo de Dickens serve como ponto de partida para um reconhecimento. Mas esse ponto de partida passa por uma espécie de amor peculiar - a compaixão. Outras formas de amor poderiam ser investigadas, como momentos de reconhecimento desse homo tantum - como acontecimentos dessa visão ardente, ou como formas de epifania, diríamos nós. Todo um novo evangelho se poderia escrever - qualquer coisa de revolucionário. Não é afinal possível que cada forma de amor em estado puro não seja mais do que um acontecimento dessa visão pontual e extraordinária? A marca desse encontro transcendental e dessa passagem para um plano de imanência, onde os estratos se libertam? Paixão em estado selvagem, compaixão, caritas, filia, eros em osso. Neste romance, não é por acaso que o grande acontecimento do enamoramento de Bernfried Järvi por Else é descrito como um grande arco de esperança e desilusão. Ainda que um humor feroz cerque o fervor de cepticismo, há uma inocência e uma candura que sobrevivem, com uma tímida chama, mas notável. Será que em toda a paixão é esse homo tantum que nos acontece amar, como que numa visão esplendorosa que é, por si só, já um acontecimento? Uma vida. Bernfried Järvi deixa-nos esta suspensão, este vazio, este fervor e esta perplexidade. Esta trança obtusa entre o entusiasmo, o cepticismo e o terror. Uma vida que simplesmente passa com o seu excesso, os seus tempos flutuantes, as suas observações dispersas, singulares, brilhantes ou imprevistas; e os seus assombros, lucidez, entusiasmo e indiferença. O seu absurdo. O seu humor acutilante e desesperado.
«Adeus, meu pulmãozinho, adeus, meu fígado, adeus, meu estômago, adeus, meu joelhinho branco como a neve. / Fiquei a vê-la afastar-se, até desaparecer de vista. / Caiu um aguaceiro repentino.»**
* Gilles Deleuze, Deux Régimes de Fous, Textes et Entretiens 1975-1995, Édition préparée par David Lapoujade (Paris: Les Éditions de Minuit, 2003), pp. 361-362, tradução minha.
** Rui Manuel Amaral, Cadernos de Bernfried Järvi (Porto: Livraria Snob, 2019), pp. 104-105.
Diferentes tipos de morte
Todos nós temos medo do vermelho, amarelo e azul - de Alexandre Andrade
O pintor B, em coma induzido no hospital de São José, depois de cair do alto do enorme escadote em que pintava, ouve tecerem-se em torno de si e das suas obras as conversas de filhos, ex-mulheres, amigos, familiares e actual mulher. Arriscou-se demais no esforço de pintar aquela oval, aquela cor, e a consequência, neste caso, oscila entre o maior prosaísmo e a maior grandiosidade de toda a vida humana, o amor de todos os que amamos ou em tempos amámos, e a morte.
Duas mulheres, viajando a bordo de um avião a novecentos quilómetros por hora, descobrem que um quadro de Pierre Bonnard presidiu a uma das viagens e encontros mais incompreensíveis das suas vidas, numa coincidência inimaginável e impossível de explicar. Só por esse quadro se descobrem unidas, do mesmo modo que se descobrem, como nesses momentos de rara e dolorosa lucidez que todos já experimentámos, suspensas sobre o abismo de nada saber sobre o sentido da vida, paralisadas nessa encruzilhada das mil incertezas e de todas as perguntas que nunca hão-de ter resposta.
Bianca, que tenta um auto-exame sistemático nas viagens de metro para o seu trabalho de optometrista, apesar de saber que não há maior felicidade do que ler poesia enquanto caminha ao ar livre, e apesar de hesitar em perseguir qualquer felicidade, na rotina um pouco inerte dos seus dias, questiona-se se as cores realmente nada significam, quando parecem trazer uma mensagem de vida ou de morte.
Tom sofre de cromofobia, o que lhe pode causar tonturas, ansiedade, náusea, taquicardia... e um incrível (e incompreensível para todos) rol de desculpas para não trabalhar naquela edição de imagens a cores.
A menina América morre num acidente de metro, nessa paleta de sangue, «com as suas tonalidades impossíveis de serem confundidas com outras», depois de arrematar em leilão Dans le Bordonnement I, de Tal-Coat?...
De onde caíram os confetti coloridos do azul omisso no famoso quadro de Vlaminck, A Paisagem de Outono, e que agora estão sobre os ombros radiantes de Z e Hugo, o casal reconciliado e aureolado pela mesma cor do quadro que originara a disputa e as agressões quase fatais entre um e outro? O miserável narrador do conto volta mais a este episódio do que a todos os do resto da sua vida, aos quais o distanciamento não traz como bónus a capacidade de hierarquizar, nem a importância, nem o alcance. (3)
No final, um homem que entrega a gestão de uma empresa em queda irreversível a uma criança rasga com uma faca a reprodução do quadro de Barnett Newman, Who´s Afraid of Red, Yellow and Blue III.(4)
Afinal, que nos diz a convocação deste crime passional?
Muito se poderá pensar por aqui neste livro sobre a força e o caos com que as cores nos atingem.
«Pierre Bonnard é daqueles pintores que, na fase final de uma vida e carreira que foram longas e prolíficas, retratava os objectos, pessoas e paisagens do seu quotidiano com uma simplicidade aparente que parecia por vezes confinar com o desleixo, ou até sugerir alguma regressão no talento. Nada mais longe da verdade. A aparência quase tosca de todos (e foram muitos) aqueles interiores domésticos, auto-retratos, nus, naturezas-mortas, paisagens, a impressão de incompletude, a ambiguidade na articulação dos planos, as intrigantes escolhas cromáticas, eram o estádio derradeiro e esplendoroso de um percurso estético. Os quadros mais tardios de Bonnard são fragmentos de mundo passados pelo crivo da inteligência artística e pela experiência de uma vida demasiado longa para resistir à melancolia. O resultado é belo, solar, suscita um alvoroço interior, desconcerta, cativa. O resultado também é lúgubre. Uma consciência aguda da finitude de tudo faz-se também sentir. É como se ele ao mesmo tempo pintasse as coisas e os fantasmas que se irão substituir às coisas.» (5)
E o mesmo se poderia dizer deste livro.
(3) "O azul omisso", p. 195.
(4) "Todos nós temos medo do vermelho, amarelo e azul", p. 265.
(5) "MAD-SVO", p. 101.