Sonho CCCXIV
Anaïs fora buscar Rostropovich, o seu primeiro amor, para saldar uma dívida de gratidão. "Quero dizer-te uma coisa, mas devemos falar com calma, cara a cara. Pode ser?" Ele estava muito engraçado, mais saudável e alegre. Também estava mais magro, como quando o conhecera e se apaixonara de repente. Tinha arranjado os dentes e permitia-se rir largamente e com humor, e Anaïs reflectia: "É extraordinário como estivemos juntos tantos anos e não me lembro uma única vez de o ver rir." Aquela tristeza dele pesara-lhe muito, ao ponto de não aguentar mais e partir para sempre, mas queria, apesar de tudo, agradecer-lhe, pois era uma pessoa que procedera com bondade. Iam de cadeira de rodas, com uma manta sobre os joelhos, era o seu meio de locomoção, antes de apanharem o carro, pois iam por uma espécie de caminho de cabras. Estariam já assim tão velhos? Anaïs viu ao longe a pequena quinta de dois amigos japoneses, Amie e Douglas, à beira do lago pantanoso. Douglas cultivava a sua horta com um amigo. "Olá! Olá!" Gritou Anaïs animada, enquanto explicava a Rostropovich que aquele era um casal muito simpático, de quem gostava muito. Porém, Rostropovich, apesar da longuíssima separação, teve um ataque de ciúmes e atirou-se ao lago, completamente vestido, de boné e tudo, para ser engraçado e ao mesmo tempo para travar conhecimento com Douglas. Mas Douglas tinha fugido de um regime violento e ficou extremamente assustado, a única coisa em que pensou foi em matar Rostropovich. "Ele é inofensivo! Ele é totalmente inofensivo!" - gritava Anaïs. Mas Douglas não sabia falar português. Disparou sobre Rostropovich e já passara tanto tempo que era evidente que Rostropovich se tinha afogado. Anaïs estava tão desesperada que nem conseguia pensar. "Onde está o corpo? Onde está o corpo?" - perguntava repetidamente, como se um corpo valesse uma alma.
