Para a exposição de pintura de João Albuquerque

 

25 de Maio de 2024

(até 12 de Junho de 2024)

Centro Cultural Fernão de Mendes Pinto

Almada

 

Uma certa vez aconteceu fazermos uma viagem de camioneta de Lisboa até Famalicão, nós e um punhado de poetas que iam ler num encontro de poesia afro-ibero-americano. Aí nos encontrámos pela primeira vez e em viva voz, eu e o João Albuquerque, fora de uma certa virtualidade do Facebook, onde nos tínhamos cruzado. Nessa viagem fiquei a saber que o João é um orador nato e, além disso, um falador inveterado, sincero, muito culto, vivaz, brilhante e por vezes incauto. Com um fino sentido de humor, autêntico, mordaz, amiúde viperino, e também com um profundo sentido lúdico das coisas. Pode parecer uma introdução despicienda, mas não é. Não deixa de ser curioso que estes traços de carácter se expandam na sua pintura, que tem uma energia irreverente e por vezes esfuziante. Vindo de engenharia, João decidira dedicar-se às letras, tendo sido diversas vezes bolseiro, e então, disse-mo quase entrelinhas, andava a fazer umas experiências, pintando a óleo. Lembro-me na altura de lhe ter pedido que partilhasse algumas das suas pinturas, há um ano… mas entretanto o João fez um longo caminho. Esta é a sua segunda exposição e já lá vão cento e vinte quadros. Há nestes quadros um grau de consistência. Os seus quadros apresentam, como a sua pessoa, um ludismo dinâmico e mordaz, uma alegria irreverente. E por causa destes quadros veio-me à cabeça um pequeno artigo de Deleuze que fala de arte como um acto de resistência. Originalmente, o artigo pergunta o que é ter uma ideia em cinema. Ter uma ideia nunca é pensar numa coisa em geral, mas sim em coisas muito particulares, em campos muito específicos e singulares, nos quais, em primeiro lugar, se aprende uma certa técnica. Por isso Deleuze acaba por pensar o que pode ser um acto criativo (que pode acontecer em qualquer campo, artístico, científico, filosófico, técnico…) e responde: é um acto de resistência. Pintar torto por linhas direitas, que é o título desta exposição, fala-me precisamente disto: de resistir. Extrair da malha por vezes opressiva e apertada do quotidiano a coisa mais valiosa e essencial: um grão de liberdade. É isto que encontro nas linhas em contraponto intensivo destes quadros, frequentemente pintados nas cores mais elementares e que me trazem os afectos livres e as forças indomadas da infância. Deleuze repete muitas vezes, ao longo deste artigo, que um artista não trabalha por prazer, mas por necessidade. Esta não é uma experiência universal, é uma experiência particular, que pode parecer incompreensível para muitos. A cada obra de arte falta um povo, cada obra é feita para um povo que ainda não chegou, mas que talvez venha a nascer. Deleuze cita Paul Klee: «Vous savez, le peuple manque.» Resistir tem muitas faces. Não se trata apenas de resistir à morte, como afirma Deleuze, citando Malraux. É verdade: basta olhar para uma estátua grega com dois mil anos para perceber que, se não resistirá à morte, pelo menos resiste ao impacto mais elementar do tempo e das forças em estado bruto da natureza. Mas a profunda afinidade entre o acto criativo e a resistência tem de facto um aspecto misterioso, difícil de capturar com o pensamento. Não se trata apenas de resistir à morte, pelo menos à morte física, que é a mais evidente de todas as mortes. Existem muitas espécies de mortes, algumas profundamente trágicas e silenciosas, principalmente quando observamos que tantas pessoas ficam de facto enterradas dentro de si mesmas a partir de movimentos opressivos das mais variadas ordens. Muito se poderia escrever, quanto a este tipo particular de tragédia: a morte invisível. Resistir não é então apenas lutar contra a sua própria morte, não é apenas dia após dia tornar a ser capaz de nascer de novo a partir de um caos elementar, originário, por um lado, ou de combater as imensas forças contrárias aos acontecimentos singulares e privados, por outro. É também extrair da opressão e dos movimentos totalitários, disciplinares, globalizantes e normalizantes a intrínseca e absoluta liberdade de pensar por si. Colocar-se de pé, à sua maneira. Um acto de coragem, portanto. A relação entre a luta dos homens e as obras de arte é, como diz Deleuze, realmente íntima e misteriosa. E um acto de resistência é o que vejo em cada um destes quadros.



Sem título, óleo sobre papel, 65cm x 50cm, 2024