reflexões ocasionais I

 

Por vezes acontece que o pensamento por dentro me dispara sob a forma de páginas de um livro que estou a ler. Não tenho propriamente nenhum livro, nenhuma página, nenhuma folha impressa na minha imaginação. Nada disso. É aquela corrente do texto lido, aquela fala muda, a voz imaginada, mas não ouvida, que segue pela minha cabeça fora, principalmente quando ando a pé ou viajo de carro. Que belas coisas, irrepetíveis e inéditas, me foram dadas a ler!... (Pelo menos na minha imaginação eram de enorme beleza e pertinência, essas coisas que me causaram profundo maravilhamento e que nem li como se fossem minhas, embora aparentemente fossem produzidas por qualquer coisa em mim.) No outro dia, caminhando à beira mar, era um texto sobre o suicídio, a propósito da Isabel Aguiar. Ficou-me o tom e algumas notas que consegui tirar, na esperança de o escrever, ou melhor, de escrever qualquer coisa levemente aproximada a isso, pois é tudo o que a lucidez e a humildade permitem. Isto porque a prosa tem sempre esta fluidez, esta velocidade maior e um som que é mais interior do que exterior, ela é como um voo de pássaro que me atravessa. Que velocidade... que fascínio me imprime... E muito pouco dela se consegue realmente agarrar. Escrever depois é toda uma recriação de tonalidades e ambientes, todo um novo esforço para pensar. Mas quando a poesia aparece, curiosamente, o gravador do telemóvel já serve para qualquer coisa. Talvez aquela monumentalidade das frases, aquela coisa mais esculpida e pesada. A poesia é mais lenta, tem intervalos que dão para repetir o verso no microfone e o som dela pesa mais, é como se fosse mais material e exterior, mais físico.