Um corpo que dança, de Marcos Martins


Uma das coisas que me tocou profundamente neste documentário sobre o Ballet Gulbenkian foi que, de algum modo, no enquadramento político, cultural e musical do Portugal que vai da década de sessenta a 2000, se espelhou o enquadramento da minha própria vida e das suas dificuldades, enquanto mulher e enquanto artista, até hoje. Toda uma memória viva e por vezes dolorosa irrompeu das imagens de arquivo da RTP, dos penteados, dos colarinhos, das roupas, dos sotaques, dos automóveis antigos, dos olhares despidos. Vieram também à tona das sensações vivas as minhas próprias experiências de dança... de noite, em delírio, na solidão, em transe, no carro, em festas de criança ao som da Barbara Ann, no quarto, na sala, enquanto a minha avó de costas tocava Scott Joplin, em abstracto, caminhando e dançando na imaginação com o som mudo das cores dançantes, nos espectáculos Acarte, pregada na cadeira e dançando tanto. Velho sonho da menina de três anos que não cerrava os olhos de sono para poder ver o Lago dos Cisnes na televisão e a que agora dou uma forma humilde, mas resistente, na minha disciplina diária de me alongar ou dançar. Foram alguns os momentos em que chorei, coisa tão rara para mim nestes tempos da dita maturidade, não pelo filme, mas porque ele tocou naquela corda mais fina dentro de mim e que sabe o que é mais valioso, o que mais vale a missão de uma vida: essa dança dos gestos tantas vezes secreta e obscura que se faz para Deus, essa verdade selvagem de ser si próprio e que exige tanta liberdade, lucidez, desapego e coragem. E lá estava também o querido José Gil, a Vera Mantero. Ecoando a lógica subliminar e obscura dos encontros.


https://umcorpoquedanca.pt/o-filme/