contraponto e confissão (16) - sonhos


Escrevo os meus sonhos, obsessivamente, em busca de uma espécie de verdade. Que verdade? Existe pelo menos a verdade do que sentimos e vemos, essa verdade simples que a toda a hora se escapa, porque o que sentimos e vemos é sempre demais para o que podemos sentir e ver. O que sinto e o que vejo tem uma intensidade que extravasa o que sou capaz de sentir. A minha alma está sempre em busca de pequenas estratégias involuntárias para não sentir, pequenas bolhas e analgias, pequenas mortes, êxtases físicos ou amortecedores. São duas lutas contrárias. Uma, para ser capaz de ver. Outra, para não ver. Que esta espécie de verdade coincida com a realidade, esse é outro passo, outra tarefa de escrutínio. Mas, se nem sequer acedemos ao que sentimos e vemos, que haverá para escrutinar? Sou tantas vezes incapaz de os compreender, minha querida amiga, estes sonhos. Certas frases, capto-lhes de súbito um sentido ou um novo sentido no final de décadas. Tento não travar a mão nem o pensamento, apenas deixá-los fluir, com uma máxima exactidão e sem ceder a nenhuma tentação, nem plástica, nem moral, nem musical, nem de algum facilitismo como causar impressão, ou mesmo a simples preguiça ou inércia comum. Difícil. São tão imensas as forças que nos dobram e nos levam a desejar ser simplesmente agradáveis e bem-amados. O tempo passa num ápice. Pensar é doloroso e árduo, como uma corrida em que falta o ar. Ponho-me em bicos dos pés, é certo. Consigo saltar? Tento deixar livre o movimento da escrita automática, concatenada quase sem intenção. Mas o pensamento é ultra-veloz. Muda, a escrita sem som desliza na cabeça como um rolo. Que beleza! Que entusiasmo! Dessa escrita, ficarei sempre aquém. Tenho a sensação de um outro voo, eu, que não sou pássaro, parece que sei tão bem o que é voar. Não percebo o peso do corpo, nem os pés colocados no chão.


Marx Ernst 1934