Desprendimento post-mortem

 Sonho CCCIV

Tinha uma sensação estranha na boca. Com os dedos, retirei debaixo da língua uma pequena moeda, lisa e fina como uma hóstia e brilhante como prata, sem nenhuma inscrição. Mas não era apenas uma, eram muitas. Nasciam como gotas de saliva debaixo da língua. Pensei que podia haver um fenómeno magnético entre as moedas. Uma atrairia sempre mais. Por isso teria de as tirar todas de repente e de uma só vez. Foi o que fiz e, de facto, o estranho fenómeno chegou ao fim. Não queria saber daquelas chapas. Meti-me numa carrinha com o mecânico da Galp para reactivarmos a bateria do meu carro, que se fora ao ar. De repente ele atirou-se porta fora com o carro em movimento e gritou: "Tire o cinto!..." Pensei que lhe tinha dado um ataque de loucura. Num segundo me apercebi que o carro disparara sobre a falésia e caía a pique sobre o mar. "Nada a fazer. É tarde de mais." Mas o carro continuava a cair, parecia que a falésia não tinha fim. "Talvez seja melhor fazer alguma coisa." Abri primeiro o vidro, pois parecia-me impossível fazê-lo debaixo de água. O cinto estava encravado. "Logo agora." Lancei-me pela porta mesmo a um segundo do embate. O mar estava coberto de vagas alterosas. As minhas condições não eram melhores. A morte por afogamento seria pelo menos rápida. Morrer contra as rochas da falésia, pelo contrário, parecia-me um exercício de tortura medieval. Equacionava as minhas hipóteses de sobrevivência com um desprendimento paradoxal, quase como se já tivesse morrido. De que nos serve desesperar, se já estamos quase mortos? Decidi afastar-me o mais possível e nadar ao longo da costa. Foi o que fiz. A minha energia era óptima e o meu estado de espírito excelente. Nadei até que me deparei com um grupo grande de surfistas. Misturei-me com esse grupo. Não tinha fato nem prancha, mas não me apetecia falar. Para quê contar uma história complicada e além disso incompatível com a minha tranquilidade? Sempre sonhara elevar-me a essa neutralidade de Duchamp, esse spleen e fino humor que se captava na sua magreza dançante dentro dos fatos. Sem êxito. Mas agora, sem qualquer intenção ou empenhamento, alcançara uma espécie de desprendimento post-mortem, talvez por cansaço ou por excesso, quem sabe?