Ingmar Bergman

Sonho CCLXIV


Nos Morangos Silvestres existe uma carroça que leva um morto, correndo mais do que pode a sua carcaça, e, em Fanny e Alexander, um moribundo.
 
Essa carroça, estalando contra o chão em todas as juntas, desconjuntando-se na madeira como se fossem nossos os seus ossos, passou a trilhar os meus sonhos com muita frequência. Descia agora numa velocidade alucinante pela estrada em espiral que rodeava uma alta montanha, toda bordejada de perigosas e angustiantes ravinas.
 
Quem conduzia era uma rapariga de cabelos revoltos e olhos fixos, mas, quando me viu, foi tomada de uma espécie de pudor, abrandou a velocidade e deixou-me subir.
 
Fizemos ainda uma grande parte do caminho como se fosse um passeio, tranquilamente, mas em silêncio absoluto. Estávamos longe do sopé da montanha e era tão triste e cinzenta toda a paisagem, que um peso enorme me pendia sobre o peito, tirando-me o ar.
 
Eu suspirava de um modo muito sonoro, por causa dessa falta de ar.
 
Os ramos torcidos e negros das árvores e os penhascos agudos e cinzentos davam-me uma vontade absurda de chorar.
 
Quando olhei para os escuros abismos que rodeavam a estrada, as lágrimas começaram a correr dos meus olhos em corrente e eu soluçava, com o rosto enterrado nas mãos.
 
A rapariga voltou-se para trás e disse-me:
 
«Acho melhores saíres. Continuas a pé.»
 
Fiquei de pé, parada nas estrada, com as lágrimas a caírem dos meus olhos, e vi a carroça disparar numa corrida alucinante, numa velocidade que a sua frágil matéria não podia suportar.
 
Numa curva apertada a carroça saiu da estrada e ainda levantou voo sobre o abismo.
 
Senti-me como se fosse os cavalos, com as patas perdidas no ar, sobrevoando em segundos a própria morte.
 
Não podia compreender o sofrimento dos animais.
 
O sofrimento dos animais era ainda mais insuportável que a imaginação do infinito.
 
Agora tinha uma aguda falta de ar, e pensei que talvez fosse morrer.
 
A rapariga voou pelo ar e ficou sobre o pico agudo de um penhasco durante uns segundos, rodeada de chamas.
 
É possível que nesse momento a rapariga que parecia um ícone num altar, rodeada de pequenas chamas que não chegavam a tocar-lhe nos pés, tivesse mudado de ideias.

Mas o momento não durou mais que um segundo.
 
Foi talvez Deus quem a fulminou com um relâmpago.