Turner

Fragmento 90

 
Do alto da rua que desce, sobre os telhados e as copas das árvores, vê-se ainda o mar, o imenso mar tranquilo em que planam quase imóveis os grandes navios mercantes, e, por cima deles, as nuvens, as inesperadas e enormes nuvens em múltiplos e suaves graus de cinza que se erguem em castelos do outro mundo e que falam de Turner.
 
Parece que as lágrimas me saem pelos poros da pele, não pelos olhos, mas sim pela pele, com um arrepio de acidez, dolorosamente amargo. O peito oprime-se com uma intensidade insuportável e, de repente, parece que sou aquele degradê entre as cinzas, que é por ali que passo, que é por ali que voo, com esse rápido arrepio que arde pela espinha acima e uma inesperada libertação.
 
Ah!... Vida!...
 
Bem diz Deleuze que Londres é a nossa Pítia, porque Turner está lá.
 
Eu tenho o meu Turner à porta de casa, nas minhas visões de nuvens e de mar.
 
Não há dúvida. São visões em que se abre a passagem, não a derrocada.
 
A pele sabe o que é «atravessar o muro». O corpo sabe milímetro a milímetro essa coisa incomparável que não é de época nenhuma, isso que vem de um eterno futuro ou que foge para lá.
 
Qualquer coisa que corre, ondeia, rebenta... o desejo?...
 
Nessa passagem que me desfaz, as cores cantam e o corpo dança, imóvel no seu lugar, na sua insuportável intensidade.
 
Que me importa se morrer? Nada me importa.
 
Tenho vontade de morrer exactamente como quando vejo esta paisagem.
 
Diluir-me nesta visão de cinza, absolutamente indiscernível.
 
Eu...
 
Afinal isso é só o motivo para um vago sorriso, vagamente apaziguado.
 
Pois não há qualquer dúvida que sou só de passagem, como que por um estranho acaso que não deixa, ainda assim, de ser uma fulguração.