Artaud

Fragmento 55


De um modo mínimo ou intermitente, pelo menos, posso acreditar que me conheço.

Essa poderá ser uma crença operacional, desde que usada por intervalos de tempo limitados. Mas a cada passo de existir me surpreendo.

Por exemplo, naquele distante mês de Dezembro, a estranha e maravilhada perturbação de ver numa imprevista radiografia, de súbito expostas nos seus brancos ossos luminosos, transparentes e vivos, e com um contraponto tão incandescente - as mãos.

Elas saltam do envelope, as imagens, e eu ali fico, petrificada.

Olho-as como se fossem peristilos de flores ou aranhas vistas de muito perto ou estalactites, com o mesmo fascínio e admiração abstracta que me levam a amar a estranha natureza terrestre e cósmica com um primitivo respeito e veneração.

Afinal, já não quero ser reduzida a cinzas depois de morta.

Deixem que o meu corpo actual se disperse em mil pedaços e que voe em chamas.

Enterrem-me então e que estes ossos façam parte do chão e sejam também como todos esses testemunhos anónimos de como é urdida aqui na terra a nossa primeira casa ou primeiro templo: ponto por ponto, rima por rima, repetição por repetição, diferença por diferença - de contraponto em contraponto.

É incrível - tudo o que somos capazes de ver quando a dança faiscante dos corpos enfim se mostra.

Súbita sinfonia incandescente das coisas terrestres ou ritornello de estrelas, linha de fuga da arte imperscrutável que atravessa o mundo - e destas inesperadas imagens soprava uma força de beleza que de novo me inspirava um ascetismo violento.

«Nada de boca. Nada de língua. Nada de dentes. Nada de laringe. Nada de esófago. Nada de estômago. Nada de ventre. Nada de ânus.» E eu diria ainda: «Nada de carne.»

 
parce qu'a mon corps
on ne touche jamais *

 
 
* Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de Dieu (1948)