Fugir da guerra

Sonho CCCXIV


Diziam-nos: «Precisam de abandonar as vossas casas. O exército inimigo está demasiado próximo.» «Só mais um dia.» - pensava eu - «Só mais um dia.» Mas podia ver ao longe o clarão das bombas e ouvir o som dos morteiros. Em tempos de guerra, só sobrava o amor. Que mais se podia levar? Tantas coisas, nas pequenas casas, construídas com tanto trabalho e dedicação. As flores na varanda. Os quadros nas paredes. A composição de cada recanto, entre a utilidade, a funcionalidade e a beleza. Os armários, as loiças, os livros, as roupas... Não se levava nada, a não ser, eventualmente, o amor. Mas a mim o amor correra tão mal. Por imaturidade e talvez por azar, mas não por culpa, pois nem da minha infantilidade pudera ter consciência, até que a tivesse. Tinha de partir de mãos vazias. Levava as jóias debaixo da roupa. Quem sabe pudesse trocá-las por comida ou alguma espécie de abrigo. E levava os gatos, um deles às costas, o outro no braço. Tinha esperança que a minha casa permanecesse intacta, depois dos ataques, e que a ela pudesse regressar. Um exército não poderia invadir todas as casas, ou poderia? Que mais poderia levar? Será que também assim nos sentiremos na hora da nossa morte, pensando no que poderá carregar a estranha natureza da nossa alma, para a outra margem?

Imagem criada com a ajuda da IA