Fragmento 126
Antes do minimercado abrir, já estava esperando à porta um velhote com um aspecto inofensivo, quase inocente, mas desleixado, desarranjado. Apareceu uma outra velhota também pobremente vestida, embora muito composta, e meteu-se com ele, cheia de mofa: «Por aqui logo de manhã, hem, compadre?... O que anda você por
aqui a fazer?...» E no mesmo tom, continuava: «Olha, Olha!...Não me diga
que já está atravessado!...» «É o travéssio!...» Respondia ele, com um riso
triste e uns laivos ironia combalida, como alguém que aprendeu a rir num
extremo de miséria. «É o travéssio, é o travéssio é!...» Ecoava ela, adoptando de imediato a palavra inventada, piscando os olhos como uma
mãe a uma marotice de criança. «E a menina, o que faz por aqui?» Retorquiu o
velhote. «Ora!...» Respondeu a velhota matreira. «O mesmo que você!... O que é
que havia de ser?» E acrescentou, rindo: «A sede é muita!...»
«Eu já venho de
Cascais.» Confessou-se o velhote. «Já me levantei há muito tempo.» E ela,
sempre a rir: «Eu hei-de contar à sua senhora!... Eu hei-de dizer-lhe das suas
andanças!...» E lá se misturaram os dois pelos corredores, rindo com aquela
seca e dura arte de vencer o desespero. O diálogo quase em gritos que ninguém
entende, mais essa angústia subtilmente encoberta de esperar à porta de um
minimercado para poder comprar umas garrafas de vinho. Só a mim que ali
estava sem que dessem por isso parecia doer aquela cumplicidade condoída,
vendo passar os dois velhotes que formavam um par na elegância combalida da sua mútua
ironia.