Fragmento 21
Houve um tempo em que quis que me
fosses espelho, mas não me iluminaste.
Fiquei de olhos abertos na escuridão, à
espera da luz, mas a luz não chegou.
A minha luz ficou por nascer – e em ti,
também eu fiquei por nascer.
Em vão quis que me fosses esse outro
corpo com que celebrar o meu.
Foi um espelho sempre tapado, para mim
sempre coberto com um pano de feltro gasto
igual a esses panos que cobriam os
móveis das casas de onde todos partiram
e a que ninguém voltou, afinal, depois
da grande viagem.
Teria talvez precisado que me
devolvesses, com a tua, a minha existência,
mas não se levantou nenhum eco do meu
clamor às montanhas
e eu fiquei por aí perdida nessa
paisagem surda-muda
dentro de um suave caixão de vidro, tal
qual a outra princesa,
enterrado nos meus ouvidos o silêncio,
como um vazio que me desvairava.
Quis que me fosses voz, mas não vi
nada, não ouvi nada... Ó dor intraduzível!...
Enviei-te um poema, como quem manda uma
flor com uma carta,
um pedaço de lã, ou um retrato dentro
de jóia...
mas nunca cheguei a saber se lhe
tocaste, a esse corpo amoroso entregado,
nunca soube se chegaste a tocar-lhe –
pois só tive de volta silêncio... e a dor
de conhecer a opacidade – e de ficar
exilada, talvez, como morta entre páginas por abrir.
Errei tanto quem me aconteceu amar... e
nunca cheguei a amar quem me amasse.
Foi esta maldição a minha de errar sempre
um qualquer cruzamento possível,
como uma praga sem sentido... uma espécie rara de infidelidade.
Mas nunca me separei dos versos nem do
mundo que me atravessou,
nunca me separei de como me olhou a
visão que olhei, ao amar-te,
nunca me separei do amor que me tomou,
em contemplar-te,
pois quis fazer só uma coisa obscura e
muito antiga, essa magia de te convocar
com artes de um feitiço para me
transportar, intacta, para as tuas mãos.
Penso, para me consolar, que talvez estivesse doente e intocável,
e estava... e talvez por isso tivesse
sido assim... mas é uma fraca consolação,
sei que é uma fantasia muito tosca,
como uma má desculpa,
porque em tudo pareço ter falhado, com
dor, e fiquei como essa vagabunda meio louca
a dançar no que me sobrou da vida,
funestamente, até poder enfim chorar estas lágrimas,
chorar como quem recomeça para depois sonhar outra vez e ser criança,
para depois da queda me encher de graça, de voo, de futuro e de dança,
ainda que apenas uma vez, uma breve e
fugaz mas outra vez, outra vez.
Não escrevo agora versos de amor a
seres humanos que se fecham
como pérolas em conchas, que se
enterram como mortos descendo às valas,
ainda que proclame que voltarei sempre a escrevê-los, estes versos
por um novo amor não-humano a este mundo,
uma vez mais e outra vez e outra vez...
É uma proclamação, uma promessa. Porque
agora parece que falam mais comigo
as flores e as abelhas que voam no
calor, agora parece que são as árvores
que nascem à volta da minha casa quem
mais me contempla e acompanha.
Quero escrever versos de amor a este
mundo, sonetos de amor para a água tranquila
que cintila nos tanques e para a luz
que vibra em recortes na relva,
porque aqui e agora sempre me olham os
cactos que florescem na primavera à beira mar,
eles sempre me vêem, sempre me
atravessam, me tocam e me reflectem
e por isso quero fazer-lhes poemas de
amor hoje e amanhã
como quem se entrega, dando-lhes de
volta um corpo inteiro.