Fragmento 45
O erro de Kant foi considerar Deus como
o fundamento necessário para uma metafísica dos costumes, ou seja, para a
motivação séria de uma acção realmente boa e virtuosa, cuja recompensa estaria
numa outra vida, na continuação além-mundo da alma imortal (por exemplo, na
ideia cristã do Reino de Deus). Como é
que um ser humano pode motivar-se na vida prática com uma tal teoria? A humanidade,
por natureza, não parece destinada, nem ao sacrifício, nem ao martírio. Pelo contrário,
a humanidade parece destinada à alegria. Como compreender as motivações de
fanáticos que se fazem explodir em praça pública, na mira do paraíso?
Que a ligação imediata a uma coisa
maior e a dependência prática em Deus, num sentido Espinosista - «Tudo o que
existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido» -, ou
seja, que essa ligação tenha o resultado prático imediato de libertação, saúde
e graça, foi isto que escapou a Kant, de forma dramática. Pode-se ser foco de
graça com o estômago vazio, um passado miserável, um desgosto amoroso e a conta
bancária a zeros. É óbvio que estes sofrimentos não constituem a vocação
natural de nenhum ser humano, mas a graça é materialmente inexplicável. Surge
inesperadamente. Sente-se sem aviso prévio. Está ligada a uma leveza
paradoxal que é a de nada ter importância, mas tudo manter, ainda assim e em
si, um valor infinito. É uma alegria que dura mil anos e dança ao lado das
guerras, das destruições e das tristezas, deixando-as embaraçadas,
desajeitadas, como fracos actores num teatro infinito, poeiras desengonçadas entre
o majestoso bailado das estrelas... A graça deixa o horror sem jeito. É um
contraponto infinito. Um contraponto infinito para a crueldade e o
absurdo do mundo, e nem sempre perceptível. A graça é, neste aspecto, parecida com as asas de uma borboleta
que ontem poisou na grade da minha varanda. Eram duas asas magníficas,
coloridas como se de uma aguarela abstracta se tratasse, e via-se nelas a
energia das linhas brilhantes e fluídas que pareciam os traços rasgados e
livres de um pincel. «Que maravilha!...» Pensei eu. Aproximei-me, fascinada, e
apercebi-me, estando mais perto, que as bordas das asas estavam «roídas». Faltavam
bocados. E ali afinal também estava marcada a ordem de uma outra espécie de
violência. O meu coração apertou-se, o meu peito oprimiu-se. Porém,
paradoxalmente, isso não tinha importância. E o valor infinito da ínfima
borboleta, o seu valor sagrado, digamos assim, era, apesar disso, completamente
independente dessa falta de importância. Porque não interessa o tamanho das
coisas, pequenas ou grandes, importantes ou insignificantes, porque a dimensão
delas, vistas sob este afecto, evaporou-se. Dançar fluidamente entre dimensões
evaporadas, é essa a essência de um estado de graça. Não interessa o peso, a
consequência, o primeiro e o segundo, o antes e o depois, a causa e o efeito.
Tudo fica leve, tudo dança, tudo flui. Tudo - na sua passagem, na sua
consumição, na sua destruição, na sua participação inegável de um outro sentido
-, tudo tem um valor absoluto. Mas esse sentido é como uma franja,
capta-se num limite, e o seu sinal é esta alegria. Uma absoluta confiança na
vida, que já não passa pela forma de uma garantia humana, de um contrato
meramente humano. Uma vida que já não é apenas a minha, apenas a da borboleta,
apenas a de uma ou outra coisa. Mas uma vida em que cada coisa,
independentemente do seu tamanho, tem um valor
infinito. Uma alegria injustificável e impossível de esquecer. E ainda que
aconteça numa fracção de segundo, que dure o tempo de uma breve faísca, é uma
alegria que dura um milhão de anos. Como um raio que fulgura e cuja forma, num
instante captada, num recorte faiscante de quartzo, jamais se esquece. Kant
decerto não a experimentou, ou não teria necessidade de um outro reino.