Finalmente chegara a hora de Francisca M. poder estar com Heinrich Hart, ao fim de tantos anos!...
Apesar de velho, ele continuava a magnetizá-la com a mesma intensidade.
Como ela amava aquela peculiar e eterna combinação de força e delicadeza que podia captar nos seus movimentos e no seu corpo, com toda a nitidez!...
Seria um tal emparelhamento entre feminilidade e virilidade, num mesmo corpo, que a deixaria para sempre tão arrasada?
Ou era a forma como trocava os ditongos em «ão» por «am», como mordiscava o lábio inferior, o pensamento um pouco tortuoso, as atenções que lhe prodigalizava e o gozo e a marotice que se destilavam do seu olhar?
Ou era a forma como trocava os ditongos em «ão» por «am», como mordiscava o lábio inferior, o pensamento um pouco tortuoso, as atenções que lhe prodigalizava e o gozo e a marotice que se destilavam do seu olhar?
Certamente a Francisca M. haveria de esperar muitos anos antes de conseguir descobrir as palavras ou o conceito que descrevessem com exacta precisão a natureza real dessa magnética androginia, que se expressava em particular no movimento e na forma das mãos - finas, brancas, suaves, mas fortes e bem delineadas, como que marcadas a traço firme num desenho a carvão de Michelangelo.
Sentados lado a lado, ela podia sentir com perfeita nitidez a combinação destas duas forças opostas no corpo encostado ao seu, fino e elegante, vestido de linho branco.
A Francisca perguntava: «O que quer dizer WAS WIR?»
Mas não obtinha resposta.
«Dabliú dabliú.» - Insistia a Francisca, sentindo-se uma perfeita idiota.
Pois não há nada tão confrangedor como insistir em obter respostas de quem não no-las quer dar.
A Francisca ansiava por poder despir-lhe a camisa branca, botão a botão, e libertar-se a si de toda a parte de cima de um só golpe, camisola e roupa interior, para poder encostar o seu peito nu ao seu.
Sonhava com esse instante mágico em que se uniriam num beijo e ela poderia enfim fluir na embriaguez antecipada a tensão infinitamente suspensa do seu desejo.
«Ó sonho!... Não acabes ainda!...»
Mas o problema era o empregado de mesa, que não trazia a conta. E o Multibanco. E a prima Constantina. E o estacionamento do carro. A cómoda azul. O tapete persa. O relógio de corda. A leitura dos sete volumes de Proust. As circunstâncias. A vontade alheia. As intrigas. A maledicência. A inveja. A indiferença. O prazo de entrega da tese. As falsas teorias sobre a sexualidade dos poetas. O silêncio. A ausência. A rejeição. A distância quilométrica. A traição. O medo. A renúncia.
Afinal, tudo se interpunha entre a Francisca e a consumação do seu amor.