Fragmento 110
De olhos fechados, o sol. Vejo uma bola
de fogo gigante a girar veloz no azul infinito, incrivelmente dourada. Mas
porque vejo este azul, poderá ele ser infinito? Nada do que vemos é infinito.
Tudo se apresenta completo. Vejo as explosões de fogo na superfície
incandescente de um sol tremendo e lembro-me de Dante e das suas visões
selvagens e nítidas, extraordinariamente nítidas. «Era um homem fora do tempo.»
É no que penso. Tinha qualquer coisa de bruxo, qualquer coisa de oriental.
Apaixonado como um romântico, visionário como um surrealista, místico como um
santo e perspicaz como um feiticeiro. Este sol podia ser de Dante. Mas Dante faz-me
pensar na Filomena Molder e no júri da minha tese. Já estamos muito longe. Regressemos
ao sol. A bola iridescente e ardente, no meio das galáxias e constelações
prateadas e azuis, com aquela espuma, aquela poeira da luz branca e rosa que
nos obriga a pensar no infinito... Universo!... Ó universo incomensurável que
me comoves!... Mas é só um sol... Vamos, concentra-te. Abstrai o fundo. Não é a
espiral das constelações entre os buracos negros. Não é o esplendor frio e
gelado das super-novas... Um sol... Vamos imaginar um sol como uma estrela
dourada em ouro, daquelas estrelas que nas igrejas colocam em cima das cruzes,
nos altares. Uma coisa mais concreta, mais simples. Vejo a estrela de ouro sobre
a toalha de linho do altar, em frente de um quadro escuro e apagado, no meio do
mármore e da talha dourada, entre o trompe
l’oeil dos mármores e das volutas de videira compostos uns com os outros
como blocos sinfónicos. Mas é só a estrela. Pára, ó pensamento que voas... É
só um sol e é como uma auréola em torno da cabeça de um santo. Como segurar os
cavalos?... Vejo uma pintura bizantina, com toda aquela ebriedade do dourado. Pintores
bêbados de luz, os bêbados de Deus, esses humildes artífices que se drogavam
com o ouro dos retábulos... Oh!... Quando é que irei conseguir imaginar apenas
um sol?... Extremamente difícil, é extremamente difícil. Eis uma proeza - a meditação
de ver apenas um sol – e é
impossível. Os cavalos não se seguram. As imagens soltam-se como bandeiras
desfraldadas ao alto. O pensamento voa. Pensemos então numa miniatura em ouro,
presa por um fio, pensemos numa minúscula estrela, sobre um lenço de veludo
negro. Assim é mais simples. Ouro, estrela, miniatura, veludo. Assim consigo
ver tudo, é muito concreto e realmente pequeno. Muito concreto e muito pequeno,
é isto mesmo o que eu preciso. Ouro, estrela, miniatura, veludo. Não penses no
fio, não imagines o colo da princesa, nem o vestido, nem as pernas finas e
longas nem a pele nua, debaixo do vestido. E as paredes frias do palácio, essas
pedras enormes que escorrem água no Inverno. A austeridade do castelo recorda-me
a incrível brancura dos panos com que se cobriam as tendas no grande pátio do
Rei Artur, no filme «Lancelot», de Bresson, onde os cavaleiros e o próprio
Lancelot puxavam brilho aos elmos impecáveis... E que brilho!… Que luxuriosas
as cores dos penachos, no topo dos capacetes!... E o branco, branco, branco,
branco… Ah!... Qualquer coisa muito pequena, para que consiga concentrar-me. Um
minuto, apenas um minuto, sem que o pensamento levante voo. Será possível?