Já tinham passado muitos, muitos anos.
No sonho, podia ver com nitidez o meu rosto no espelho.
Teria noventa, cem anos?
Quem ficara?... Quem partira?...
Parecia que ainda ontem fizera o luto dessoutro rosto de criança, que tão cedo perdera, para ser outra coisa, talvez mulher.
E agora, já era a hora da nossa morte?
Quão rápida a vida fora!...
Quão voraz o tempo!...
Fora só isto?... Como um estalar de dedos?...
Já era a hora?...
Cada ruga trazia certa história, certa emoção, certa alegria ou tristeza sedimentada.
Certos pensamentos obsessivos que porventura tinham erodido a pele, como lagartas subterrâneas.
Havia riscos na pele que falavam de perspicácia, de crueza, de acutilância, de orgulho, de altivez.
Havia outros que marcavam a luta entre a desilusão e a esperança.
Certa dor pelo desencontro entre o amor e o desejo de um certo amor, certa falha de amor.
Outras linhas, tão pungentes, diziam ainda de uma velha inocência e estranha beleza arruinada, desconhecidas.
Só agora que tinham passado, só por essas linhas que ficavam pela passagem podia perceber que tivessem existido.
Irónico desfasamento entre a consciência e o tempo, que nos sequestra como cegos ao presente.
Olhava para aquele rosto tão frágil no espelho como uma folha que treme e está prestes a cair.
O que o segurava?