Sonho CCVI
A disparidade inconcebível entre os dois elementos de um casal é sempre um desafio para a inteligência especulativa de alguém que os observe do exterior.
Era o caso típico de um casal cuja disparidade tinha o hábito de observar. Ela, impecavelmente cuidada, maquilhada, cabelos bem penteados, lenços escolhidos a dedo. Descontraída, mas elegante. Ele, barrigudo, mal penteado, a barba por fazer, por vezes com os cabelos mal lavados e sempre ponta a cima ponta abaixo, as camisolas cheias de borbotos, de tão usadas que estavam.
Um dia, a mulher aproximou-se de mim e disse-me:
- Eu conheço-a. Lembro-me bem de si.
- Ah... - respondi eu - Mas eu não me lembro nada... Tenho muito fraca memória...
- Não se iluda. - respondeu a mulher - Esse é o preço a pagar por uma memória progressiva.
- Memória progressiva?
- Sim. Quem não se lembra do passado, lembra-se do futuro.
- Coisa estranha. Tem a certeza?
- Absoluta. Sempre uma grande virtude se transforma numa fraqueza, pela grande energia que consome, e vice-versa. Uma fraqueza pode transformar-se em virtude, pela quantidade de forças que liberta. Você não se lembra do passado, porque se lembra em excesso do futuro.
- Mas quem se lembra do futuro não será antes um visionário? Pela minha parte, não me parece que me lembre de alguma coisa do futuro...
- Você não sabe. Simplesmente tenho observado que esta lei opera de um modo infalível, absolutamente infalível.
- Mas que coisa tão estranha... Eis uma visão do tempo que vai contra tudo o que até agora fui capaz de intuir sobre o tempo, e é a sua visão!... No fundo, para si o tempo é como um espaço. Se você não está num sítio, então é porque está no outro. Mas o tempo já lá está de raiz, todo feito. Estarei a compreendê-la?
- Perfeitamente!
- Talvez como num casal em que as qualidades se deslocam com um movimento que não permite que estejam nos dois elementos em simultâneo, mas apenas num de cada vez?
- Sim, talvez. Pensando bem, é exactamente isso.
Como tudo nos parece lógico e natural enquanto dormimos, e difícil de pensar quando acordamos!...