Fragmento 9
Ter citado passagens de um livro sem
nunca as ter lido é uma das experiências mais desconcertantes e poderosas que
se pode ter. De onde vos conheço?... Onde nos encontrámos, afinal, antes?... Em
que vida é que vos li?... De onde venho?... Passei por onde, ou entre
onde?... É extraordinário como nos
sentimos tão próximos destes longínquos seres que nos repetem, nas décadas ou
nos séculos ou nos milénios anteriores ao nosso nascimento. Não são estes os mais íntimos dos
íntimos, estas nossas outras almas?… Agradeço com uma intensidade próxima da
devoção terem escrito e deixado estes livros a troco de nada, tantas vezes na
pobreza ou na solidão, e agora os livros são como pontes de lianas que
atravessam os abismos da nossa morte próxima ou como as caravanas que nos transportam a
salvo pelos desertos ardentes de uma eminente perdição. Ao mesmo tempo que nos
salvam, que nos acolhem, que nos consolam, obrigam-nos a colocar tudo em causa.
Sabemos o quê, pensamos o quê, sentimos o quê, pensamos que sabemos ou que
sentimos o quê?... A consciência é escassa como um telhado partido. A nossa
vida é sempre como esta estranha casa maior do que o telhado - uma espécie de casa
absurda e que tal como um corpo se expande continuamente para fora do que
sabemos dele. Eu que em tempos acreditei (ingenuamente) que era tão importante
morrer, para que outros nascessem e pudessem começar a pensar de novo do nada,
como se partissem do zero, constato afinal que estamos sempre a começar do
meio, de qualquer coisa que já começou. Perdi a minha adolescente justificação
da morte, ganhei uma infinitude de questões. Inconsciente colectivo, reencarnação,
percepção transcendental, as pequenas percepções de Leibniz… Tantos conceitos
criativos para tentar capturar o incompreensível e para justificar uma única experiência
tão poderosa, enquanto um céptico ou um desencantado falarão apenas de uma
fatídica falta de originalidade, na miserável raça humana. Mas eles não explicam nunca esta
alegria, uma alegria que está nos antípodas do desencanto e que é tão intensa
que se transfigura em redenção.
«Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita
entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível...» (1) E eu também, eu
também, meu querido amigo, minha outra alma, eu também fiz exactamente versos
em prosa às sensações intransmissíveis com que quis tornar meu o universo
incógnito.
Fotografia de Joaquim Cardoso Dias, 2016 |
(1) Bernardo Soares, Livro do Desassossego (Fragmento 204).