Contraponto para Isabel Aguiar (9) - Jogo perigoso
Contraponto para Isabel Aguiar (7) - Raparigas
Contraponto para Isabel Aguiar (6) - O ar
Oxigénio. Atmosfera. Nitrogénio.
É bom que não nos falte o ar.
Céu. Cosmos. Espaço.
Firmamento. Infinito. Universo.
Vácuo. Vazio.
Sopro.
O que é o ar?
Porventura qualquer coisa
que te insuflei, vida,
meu grande amor.
Ignição. Vento. Voragem.
Fôlego. Respiração.
Vibração. Vislumbre. Glimpse.
De outra coisa se trata, porém,
quando falamos
de "passear um ar,"
quando se tem um ar.
Um aspecto, digamos assim.
Um aspecto subtil
que dá pistas sobre a alma,
quiçá.
Um ar de quem pensa
ou de quem tem a ideia
de fazer alguma coisa.
Um ar infeliz,
muito, muito infeliz.
Não me curei
de nenhuma personagem.
Estão sempre ali.
Permaneço doente dessa invenção
e eu mesma acabei
por passar a esse status:
de real, passei a cenário.
Todos os dias, todos os dias.
Não se trata de um duplo.
Ou melhor, de duplo,
apenas a esquálida sombra,
inicial com ponto:
A.
Os outros
serão sempre seis.
Contraponto para Isabel Aguiar (5) - O livro da personagem
Perguntaste: "Poderás escrever o livro da personagem?" Pensei imediatamente: "Sim." Há quem diga que personagens são pessoas em livros. Aquelas pessoas que por ali aparecem. Parece que serão feitas com pedaços de muitas coisas. Palavras, diálogos, descrições, desejos, memórias, visões, perceptos, afectos, análises, pensamentos. Aparecem por ali tal como as pessoas de carne e osso nos aparecem: por bocados. Tal como nós a nós mesmos nos aparecemos: truncados. Aparecem como visões e sensações e são como todas as formas de consciência e percepção: avançam (ou não avançam) por flashes. (Porque podem constituir-se sem nenhum progresso. Isto é, podem fazer-se sem avançar.) Como paisagens encandeadas por clarões. Compõem-se e ganham vida própria, uma vida peculiar que porventura nos atravessa. Personas, aragens, passagens. Mas estas personagens, cuja aventura é escrever os seus livros, que são elas? Linhas de fuga? Caminhos? Vias de experimentação? Companheiros secretos? Disfarces? Afirmações? Como todas as personagens, são como sensações que se fazem da existência dos outros e nossa. Mas são outra coisa ainda. Sentido. Missão. Destino. Paixão. Vida. Morte. Confirmação. E outra coisa ainda. Outra. Máquinas de existir, sentir e pensar. Modos de existência.
Desprendimento post-mortem
Sonho CCCIV
Tinha uma sensação estranha na boca. Com os dedos, retirei debaixo da língua uma pequena moeda, lisa e fina como uma hóstia e brilhante como prata, sem nenhuma inscrição. Mas não era apenas uma, eram muitas. Nasciam como gotas de saliva debaixo da língua. Pensei que podia haver um fenómeno magnético entre as moedas. Uma atrairia sempre mais. Por isso teria de as tirar todas de repente e de uma só vez. Foi o que fiz e, de facto, o estranho fenómeno chegou ao fim. Não queria saber daquelas chapas. Meti-me numa carrinha com o mecânico da Galp para reactivarmos a bateria do meu carro, que se fora ao ar. De repente ele atirou-se porta fora com o carro em movimento e gritou: "Tire o cinto!..." Pensei que lhe tinha dado um ataque de loucura. Num segundo me apercebi que o carro disparara sobre a falésia e caía a pique sobre o mar. "Nada a fazer. É tarde de mais." Mas o carro continuava a cair, parecia que a falésia não tinha fim. "Talvez seja melhor fazer alguma coisa." Abri primeiro o vidro, pois parecia-me impossível fazê-lo debaixo de água. O cinto estava encravado. "Logo agora." Lancei-me pela porta mesmo a um segundo do embate. O mar estava coberto de vagas alterosas. As minhas condições não eram melhores. A morte por afogamento seria pelo menos rápida. Morrer contra as rochas da falésia, pelo contrário, parecia-me um exercício de tortura medieval. Equacionava as minhas hipóteses de sobrevivência com um desprendimento paradoxal, quase como se já tivesse morrido. De que nos serve desesperar, se já estamos quase mortos? Decidi afastar-me o mais possível e nadar ao longo da costa. Foi o que fiz. A minha energia era óptima e o meu estado de espírito excelente. Nadei até que me deparei com um grupo grande de surfistas. Misturei-me com esse grupo. Não tinha fato nem prancha, mas não me apetecia falar. Para quê contar uma história complicada e além disso incompatível com a minha tranquilidade? Sempre sonhara elevar-me a essa neutralidade de Duchamp, esse spleen e fino humor que se captava na sua magreza dançante dentro dos fatos. Sem êxito. Mas agora, sem qualquer intenção ou empenhamento, alcançara uma espécie de desprendimento post-mortem, talvez por cansaço ou por excesso, quem sabe?
Contraponto (3)
Algures deves saber, porque assim começas, que em todas as casas estive sempre de passagem. Saberás, certamente, com essa inconsciência lúcida dos que não medem o que sabem, que em todo o lado estive de passagem, como um estrangeiro ou como um pária. Em todo o lado senti que não conhecia ninguém. Ou que ali estaria por pouco tempo, mesmo que estivesse muito. Cheguei a divertir-me, se é que tal conceito se pode aplicar, imaginando-me um turista na casa que era a minha, espião nos vários locais por onde passava. Estava ali como observador ou como alguém que tem uma missão secreta e insuspeita. As coisas que via... nada tinham a ver com o que se pudesse supor que visse, não é verdade? Era, se tal se pode imaginar, uma personagem ao avesso, pois por fora parecia pessoa, mas, por dentro, para poder suportar tanta estranheza, me ficcionava como outra coisa: turista, espião, vagabundo ou simplesmente de passagem - uma pessoa de passagem, espécie de pária.
(Textos para Isabel Aguiar, a autora dos excertos aqui citados e que me lançou o desafio de escrever a partir de "Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita")
Contraponto (4)
Contraponto para Isabel Aguiar (2) - um título
Contraponto para Isabel Aguiar (1) - admiração
O que amo na escrita de I. é a velocidade e uma prosódia peculiar, entrecortada, que se elabora como ritmo da sofreguidão, da emergência. É difícil analisar o que se admira na escrita de alguém, como no corpo, na alma de alguém. É difícil passar da impressão, dos afectos e das percepções ao pensamento. Talvez seja impossível cortar uma fatia do infinito, sem o desvirtuar. É impossível? O pensamento também é infinito, também voa a uma velocidade infinita, que nos escapa. Já no século XVII, muito antes de Freud, Leibniz se apercebeu dos "pensamentos voadores," aqueles que vão tão rápido que nem damos por eles... e não há dúvida que há, nas operações de pensar sobre alguma coisa, algo de semelhante a trinchar um animal, como observou Platão. Há uma violência terrível quando se pensa. Desmanchamos tudo. Abrandamos ao ponto do inenarrável. Congelamos. Por vezes temos a sensação de morrer aos poucos, bocado a bocado. As lentes de aumentar transformam os poros da pele em crateras lunares, células em galáxias ou universos, veias em ramos de árvores, gafanhotos em labirintos. Existem muitas máquinas possíveis para pensar. Pintar, escrever, dançar, torcer o corpo. Outras, mais tradicionais. Se vamos longe demais, perdemo-nos e é verdade que arriscamos, para sempre, uma difusa e efectiva ruína. Que ruína é essa? O desnorte? O não saber quem se é? A angústia? O infinito? O nada? Amo a escrita de I. porque corre apaixonada em direcção à falésia e fica ali a balançar, como um corredor incauto preso num arbusto. Ambos tão frágeis e fortes, o corredor e o arbusto. Cairão? Esta escrita fica ali na margem da fascinação pelo fundo, suspensa da vertigem. Porque nesta escrita o tempo está sempre a acabar de se fazer e agora imediatamente voa. É como se faltasse o ar para o que tem de ser dito. O que tem de ser dito e pensado não cabe na vida, ainda menos nas palavras, extravasa por todos os lados. Há esta urgência tão pungente e dolorosa de agarrar o agora, porque o tempo não regressa nunca e a vida acontece de uma vez por todas em cada gesto e não se repete. É o que amo aqui, chamemos-lhe escrita.