ANDREIA MARQUES
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Desejo
Fragmento 186
«Se o desejo pudesse trazê-lo até mim de corpo e alma, ao desejado... Se tivesse a força de um raio e, mesmo sendo uma árvore, o arrancasse pela raiz... Se o desejo arrastasse montanhas e abrisse os mares e devorasse as distâncias e o universo, ah!, não só, não só sendo forte e entrando na substância do mundo, pois essa é a natureza invencível do desejo, é o gume diamantino e a sua aresta fulgurante, criar sempre qualquer coisa, nem que seja uma destruição, e operar um diferença, sempre, mas se tivesse a velocidade e a força para o arrebatar num cavalo alado e trazer até mim de uma vez por todas, ao desejado... Estranha força e paradoxal que tem uma potência perfeitamente inversa ao seu fim... Porque é a mim que ele arrasta no turbilhão como se eu fosse a feiticeira montada no vento; é a mim que transforma no fumo que sobe pelas chaminés e se compõe em fluxos de ar, de sopros e de nuvens; é a mim que trilha e separa e urge; que abala e transforma deixando a marca da sua onda; e é em mim que é motor dessa audácia indomável de imaginar a leveza - talvez a esperança. Mas «esperança» é ainda um termo demasiado cristalino quando comparado com a força tremenda e obscura que nos faz agarrar à vida com unhas e dentes, depois da passagem no deserto.»
Françoise M., Cartas, 1976-1996.
Sonhos
Fragmento 185
Quanto a sonhos, somos inimputáveis.
Quanto à sua escrita, e como Freud aliás percebeu, trata-se de um outro problema.
Quanto à sua escrita, e como Freud aliás percebeu, trata-se de um outro problema.
Sobre a nova linguagem dos animais
Sonho CLXVIII
A Maria do Mar era ainda bastante jovem e seguia atrás dos pais.
A mãe falava depressa e com charme enquanto contava muitas mentiras, mas, curiosamente, o pai não parecia dar conta de nada, mesmo quando uma velha mentira era trocada por outra, totalmente diferente, e a mesma história contada numa versão incompatível com a primeira.
A Maria do Mar seguia atrás em silêncio, como uma sombra, enquanto os pais davam saltos e corridas em ziguezagues como se fossem loucos ou saltimbancos.
De repente, porém, a Maria do Mar encostou-se num canto com a cabeça contra a parede e começou a chorar.
Dizem que chorar alivia, mas para a Maria do Mar as lágrimas ardiam como fogo e doíam como um ácido que lhe rasgasse o rosto.
Podia ouvir as vozes e os risos dos pais cada vez mais longe à medida que se afastavam. Quando por fim se acabaram as lágrimas, a Maria do Mar estava de joelhos com as mãos no rosto e a testa poisada contra a parede.
Mas os seus dedos continuavam ligados às mãos, e as mãos aos braços, e os braços ao tronco.
E os seus pés estavam ligados às pernas, e as pernas ao tronco.
E a sua cabeça em cima do pescoço, e o pescoço em cima do corpo.
Aquela dor que parecia fender a alma como se inusitados abismos a pudessem separar em mil bocados incomponíveis, essa dor afinal não tinha desfeito o corpo que ela ainda podia habitar como um viajante desfeito e exausto.
Sozinha, ergueu-se, e era como uma rocha no meio do deserto.
Tinha a força de uma rocha no meio do deserto.
Avançou para uma cidade onde se ouvia música em todas as praças e onde, por causa dessa música executada ao ar livre, os animais tinham aprendido a falar.
Os peixes dos lagos e dos tanques falavam uma língua que às vezes parecia russo, outras alemão.
Mas os pássaros, os cães, os gatos e os cavalos também falavam outras línguas distintas entre si.
Que fascinante que aquilo era!
É que os animais pareciam realmente mais perspicazes, assertivos e inteligentes que os seres humanos, nas suas conversas.
Os peixes dos lagos e dos tanques falavam uma língua que às vezes parecia russo, outras alemão.
Mas os pássaros, os cães, os gatos e os cavalos também falavam outras línguas distintas entre si.
Que fascinante que aquilo era!
É que os animais pareciam realmente mais perspicazes, assertivos e inteligentes que os seres humanos, nas suas conversas.
Crianças 8
(Frederik, de cinco anos, um trilingue norueguês.)
- Como se chamam aqueles que têm um rabo red e depois os outros pensam que é uma apple e vão lá e tiram?
- Tiram o rabo vermelho porque pensam que é uma maçã?
- Sim.
- Os babuínos?
- Isso.
- Como se chamam aqueles que têm um rabo red e depois os outros pensam que é uma apple e vão lá e tiram?
- Tiram o rabo vermelho porque pensam que é uma maçã?
- Sim.
- Os babuínos?
- Isso.
Sobre o valor ilimitado de uma tautologia
Sonho CLXVII
Como estava doente, a Francisca M. tinha de apresentar uma justificação para não ir trabalhar.
Mas não tinha sequer forças para se justificar, tal era a prostração em que se encontrava.
Quando conseguiu pôr-se de pé, verificou que as ondas do mar cobriam o caminho que tinha de atravessar e, por isso, a Francisca e um grupo de turistas, decidiram recuar.
Entraram numa sala onde se encontrava um grupo em oração e a Francisca avistou Faysal Fatin, um muçulmano que tivera um problema grave de alcoolismo.
«Continuas sóbrio, mesmo estando em África?» - Perguntou a Francisca, ajoelhando-se à sua frente.
Nesse momento chegou um gordo que a agarrou pelos ombros e que a obrigou a girar, com um desejo boçal.
«Ah!... Gosto tanto de te ver de costas!...»
«Larga-me!» - Chispou a Francisca, lançando fogo pelos olhos.
«As pessoas são pessoas.»
«Não são objectos.»
Crianças 7
(A Maria, de sete anos, a propósito do Carnaval.)
- Professora, na sexta-feira vem de quê?
- De gata. Acho que venho de gata. Mas é surpresa. E tu, vens de quê?
- Oh, Professora!... Eu venho de rato!...
- A sério?
(Grandes risadas.)
- Professora, na sexta-feira vem de quê?
- De gata. Acho que venho de gata. Mas é surpresa. E tu, vens de quê?
- Oh, Professora!... Eu venho de rato!...
- A sério?
(Grandes risadas.)