A pequena terra no meio do caos

Sonho CCXLVIII

 
Maria do Mar falava sobre Kant, sentada numa mesa onde estava também o seu mestre.
 
Havia uma pequena frase que lhe chamara a atenção e que Maria do Mar considerava impossível ter sido escrita por Kant.
 
«Escrevi esse livro, a Crítica da Razão Pura, durante dez anos, com grande perseverança e disciplina interior, mas publiquei-o num ápice, e era um livro, na época, muito pertinaz.»
 
Pois não havia forma de conjugar este grãozinho de fanfarronice com a sobriedade e o esforço contínuo, imenso, titânico, de Kant para pensar rigorosamente, o mesmo esforço que levara Kant, depois de escrever O Único Argumento Possível para a Demonstração da Existência de Deus, a escrever a Crítica da Razão Pura, e, depois de escrever a Crítica da Razão Pura, a escrever o Opus Postumum, essas notas para um futuro livro que estiveram enterradas durante quase duzentos anos porque nenhum dos seus contemporâneos as poderia compreender.
 
Maria do Mar comentava a frase como quem conta um episódio anedótico, entre a suspeição e o divertimento, o que deixou o seu mestre muito zangado.
 
- Vou-me embora. - disse ele. - Você não ia falar sobre o modo como Kant leu Espinosa?
 
- Ah!... - exclamou a Maria do Mar. - Como é possível que uma inteligência tão brilhante falhe de um modo tão confrangedor na leitura de um par? Não é espantoso?
 
- Nada tão difícil como ler ou compreender uma pessoa que está fora de nós.
 
Nesse apêndice à Crítica da Faculdade do Juízo Teleológica, no parágrafo 85, existe um filão que nos daria para muitas horas de escrita e pensamento.
 
- Quem tem o carro mal estacionado?
 
Perguntou a funcionária que abriu a porta de repente.
 
- Está ali a polícia.
 
A Maria do Mar saiu a voar para ir estacionar de novo o carro, porque, com a escassez dramática de lugares, inventá-los transformava-se numa obrigação.
 
Porém, quando a Maria do Mar entrou no quarteirão onde tinha deixado o carro, observou que um dos prédios tinha implodido e que nem sequer os escombros estavam à vista.
 
Como poderia ter tudo acontecido tão depressa?
 
Demoliram um prédio e limparam tudo e nós aqui ao lado nem ouvimos nada?
 
A Maria do Mar estava tão curiosa em ver tudo aquilo que o vazio do prédio deixara a descoberto, nomeadamente as traseiras das outras construções, que nem se lembrou mais de entrar no carro.
 
Nesse momento porém começou a observar que nenhuma das coisas estava no seu devido lugar.
 
Em vez das construções paralelepipédicas que abundam nas cidades, o que havia agora por ali era aquele tipo de construção de castelo medieval em que os bocados se vão acrescentando à medida da fantasia e da necessidade dos seus proprietários e habitantes, sem plano prévio.
 
Aqui e ali despontava uma torre, uma amurada, uma balaustrada, um conjunto de arcos, uma carantonha. Havia casinhas que faziam lembrar as dos postais dos Alpes, com flores vermelhas nas janelas, e por todo o lado um aspecto fantasioso e labiríntico expressava o gosto e o tempo livre que as pessoas tinham para estar nas suas casas e cuidar das suas coisas.
 
Que espantoso!
 
A Maria do Mar esqueceu-se do carro e voltou a correr para a sala, para contar tudo o que tinha visto.
 
Todos saíram de olhos arregalados, mas, de um modo extraordinário, ninguém viu nada.
 
- Está tudo na mesma. - disse o mestre. - Sempre foi assim.
 
- Havia ali uma casa funerária, na esquina, e uma marisqueira, um restaurante chinês com lanternas vermelhas na entrada, um pequeno café com esplanada, que pertencia a um ucraniano com um carro azul eléctrico, um ginásio de onde saíam às vezes pequenos grupos a correr e a transpirar, com o personal trainer, e agora não está lá nada.
 
Todos olhavam para a Maria do Mar, aflitos, como se ela tivesse enlouquecido, enquanto a Maria do Mar pensava de si para si:
 
«Lembro-me bem da funerária, do restaurante chinês, do café, do ucraniano, do carro azul eléctrico e do ginásio.»
 
De repente, a bibliotecária parou, levou a mão à cabeça e, com uma expressão de sofrimento, disse:
 
- Ah... Eu lembro-me... Mas não de tudo... Lembro-me da funerária e do restaurante chinês... Ah...
 
- Não houve o caso daquele mágico, no meio da selva, o curandeiro da tribo, que foi surripiado numa corrente de ar e voltou a aterrar todo nu, passados um dia e uma noite? Tarkovsky não filmou a menina paralítica que fazia andar os copos em cima da mesa, enquanto a passagem dos comboios, por sua vez, fazia tremer toda a casa? E não é verdade que a articulação entre a extensão, como diz Espinosa (o espaço-tempo, como diríamos agora nós os modernos), e o pensamento, está ainda por pensar? Que articulação será real e possível, afinal, entre Deus e a matéria?
 
- Mas aqui está tudo na mesma. Não houve qualquer mudança. Nenhuma coisa interferiu na outra. E aliás, é muito bom que assim seja. O seu discurso aproxima-se perigosamente do caos. E o caos encontra-se à beira da psicose, como sabe. É preciso pensar mas não ao ponto em que tudo se desagrega.- disse o mestre.
 
- Mas claro... claro que é possível que tudo mude com grande frequência, muito maior até do que aquela que agora supomos... - continuou a bibliotecária, com uma expressão fúnebre. - É possível até que não nos lembremos de nada e que, em todas as mudanças, nos convençamos de que o mundo sempre foi assim. Porque não? Por uma coincidência ou por um acaso, parece que agora nós duas interrompemos esta espécie de amnésia funcional, mas que sentido poderá ter tudo isto? Que fazer com um mundo assim?
 
Todos iam dormir ali, pois estavam ali acampados, como se fossem refugiados de guerra, e a Maria do Mar disse:
 
- Está na hora de dormir e, já que temos de dormir, é melhor tratarmos das coisas necessárias. Já limpei o pó dos quartos e das salas e agora é preciso que alguém varra e lave o chão.

Pois não iam dormir no meio do pó e da sujidade.

Sobrava-lhes, dessa tremenda dificuldade de pensar, uma pequena terra no meio do caos.



Brock Drenth, Resting Patterns (2013)