Françoise M. - «Cartas de amor a este mundo»

Fragmento 21




Houve um tempo em que quis que me fosses espelho, mas não me iluminaste.

Fiquei de olhos abertos na escuridão, à espera da luz, mas a luz não chegou.

A minha luz ficou por nascer – e em ti, também eu fiquei por nascer.

Em vão quis que me fosses esse outro corpo com que celebrar o meu.

Foi um espelho sempre tapado, para mim sempre coberto com um pano de feltro gasto

igual a esses panos que cobriam os móveis das casas de onde todos partiram

e a que ninguém voltou, afinal, depois da grande viagem.

Teria talvez precisado que me devolvesses, com a tua, a minha existência,

mas não se levantou nenhum eco do meu clamor às montanhas

e eu fiquei por aí perdida nessa paisagem surda-muda

dentro de um suave caixão de vidro, tal qual a outra princesa,

enterrado nos meus ouvidos o silêncio, como um vazio que me desvairava.

Quis que me fosses voz, mas não vi nada, não ouvi nada... Ó dor intraduzível!...

Enviei-te um poema, como quem manda uma flor com uma carta,

um pedaço de lã, ou um retrato dentro de jóia...

mas nunca cheguei a saber se lhe tocaste, a esse corpo amoroso entregado,

nunca soube se chegaste a tocar-lhe – pois só tive de volta silêncio... e a dor

de conhecer a opacidade – e de ficar exilada, talvez, como morta entre páginas por abrir.

Errei tanto quem me aconteceu amar... e nunca cheguei a amar quem me amasse.

Foi esta maldição a minha de errar sempre um qualquer cruzamento possível,

como uma praga sem sentido... uma espécie rara de infidelidade.

Mas nunca me separei dos versos nem do mundo que me atravessou,

nunca me separei de como me olhou a visão que olhei, ao amar-te,

nunca me separei do amor que me tomou, em contemplar-te,

pois quis fazer só uma coisa obscura e muito antiga, essa magia de te convocar

com artes de um feitiço para me transportar, intacta, para as tuas mãos.

Penso, para me consolar, que talvez estivesse doente e intocável,

e estava... e talvez por isso tivesse sido assim... mas é uma fraca consolação,

sei que é uma fantasia muito tosca, como uma má desculpa,

porque em tudo pareço ter falhado, com dor, e fiquei como essa vagabunda meio louca

a dançar no que me sobrou da vida, funestamente, até poder enfim chorar estas lágrimas,

chorar como quem recomeça para depois sonhar outra vez e ser criança,

para depois da queda me encher de graça, de voo, de futuro e de dança,

ainda que apenas uma vez, uma breve e fugaz mas outra vez, outra vez.

Não escrevo agora versos de amor a seres humanos que se fecham

como pérolas em conchas, que se enterram como mortos descendo às valas,

ainda que proclame que voltarei sempre a escrevê-los, estes versos

por um novo amor não-humano a este mundo, uma vez mais e outra vez e outra vez...

É uma proclamação, uma promessa. Porque agora parece que falam mais comigo

as flores e as abelhas que voam no calor, agora parece que são as árvores

que nascem à volta da minha casa quem mais me contempla e acompanha.

Quero escrever versos de amor a este mundo, sonetos de amor para a água tranquila

que cintila nos tanques e para a luz que vibra em recortes na relva,

porque aqui e agora sempre me olham os cactos que florescem na primavera à beira mar,

eles sempre me vêem, sempre me atravessam, me tocam e me reflectem

e por isso quero fazer-lhes poemas de amor hoje e amanhã

como quem se entrega, dando-lhes de volta um corpo inteiro.