Sobre a esperança

Sonho CLXXXIV


A Francisca trabalhava num sítio onde se lidava com adolescentes problemáticos.

Não havia muitos recursos. Metade do edifício tinha ficado com a estrutura em betão, por não haver dinheiro para mais. Mas mesmo o betão estava degradado.

Nesse dia a Francisca foi chamada de urgência aos jardins da instituição, pois havia uma rapariga que tinha tentado suicidar-se, por causa de uma paixão infeliz.

A rapariga tinha uma expressão atormentada e as faces cavadas porque sofria de uma magreza excessiva. 

Havia um grande círculo de pessoas em torno da rapariga, todas sentadas no relvado, sem saber o que fazer.

A Francisca ajoelhou-se e disse à rapariga, olhando-a bem nos olhos:

«Sabes o que se passa?... Uma pessoa saudável, quando por acaso não gostam dela ou é rejeitada, vai à sua vida. Esta pessoa não se vai matar. Não depende do amor de uma pessoa em particular, ou de um grupo de pessoas. Isso é quando somos crianças. Pensas que se pode agradar a toda gente e, ao mesmo tempo, ser-se verdadeiro consigo próprio? Só tens de agradar a Deus e a ti própria. Ou não sabes disso? Mas um co-dependente, quando é rejeitado por aquele ou por aqueles de cujo amor ou aprovação imagina depender, rasteja... ele rasteja... rasteja... É uma doença. É como um drogado ou como um bêbado que tem de assegurar a próxima dose de alívio, haja o que houver, porque o desespero e a dor são tão grandes, tão grandes... Não consegue parar.»

A rapariga chorava, de joelhos.

A Francisca agarrava-a pelos ombros.

«Que sorte a tua!... Estás viva!... Onde está o teu Deus?... Cosmos?... Natureza?... Vida?... Substância eterna e infinita?... Tabuleiro de um jogo infinito onde dançam as estrelas como contas de vidro?... Onde está o teu Deus?... Não sabes que há esperança?...»


Tarkovski, Luz Instantânea (polaróides), 1979