Sobre a vida para além da morte


Sonho CXV

 
Por causa de uma série de decisões erradas, acabei por ficar numa situação complicada. Estava a milhares de metros de altura, estendido sobre as tábuas de madeira de uns andaimes muito instáveis.
 
Tentava arrastar-me apenas uns centímetros, mas o medo era tanto que não conseguia. Cada pequeníssimo movimento parecia abrir-me uma velocidade para o abismo ou uma sede de vertigem. Era como se houvesse em mim um estranho ponto de ignição, um desejo absurdo de cair e ser arrastado pela força da gravidade para o fundo, com uma súbita e ilógica vontade de morrer.
 
Estava aterrorizado, mas percebia que não podia desistir. Estendido ao comprido sobre as tábuas instáveis, de barriga para baixo, tentava reunir numa pequena bolsa alguns objectos imprescindíveis. Não consigo contudo recordar que coisas fossem essas, tão absolutamente necessárias, em semelhante situação arriscada.
 
Enquanto o fazia, olhava para o lado e reparava num homem magro e elegante, apesar de velho, que estava ajoelhado ali e que sorria, complacente.
 
A sua complacência irritava-me muito, apesar da minha posição periclitante, e eu pensava:
 
«Mas o que é que este parvo está aqui a fazer, e ainda por cima a rir?...»
 
Afinal, aquele velho elegante era um fantasma, um morto que me olhava e ria porque as nossas duas dimensões, por uma estranha coincidência, de súbito se tinham tocado.
 
«Ah!...» Pensava eu. «Se ele está morto, então já não há perigo!...»
 
Levantava-me então com a maior agilidade sobre os dois pés, de um salto, a milhares de metros de altura, como se já estivesse igualmente morto e dessa maneira não pudesse ter mais medo de morrer.
 
O homem, que era um cavalheiro, convidava-me para visitar a sua casa e eu seguia-o alegremente, através do mundo dos mortos. A única diferença, nesse mundo, é que se saltava de uns planos para os outros sem fazer transições lógicas entre eles, como se o espaço tivesse sido todo dobrado.
 
De uma rua passava-se para uma cozinha e daí para uma floresta, para um corredor, para um trilho de coelhos, para uma praia, para uma escarpa, para um centro comercial ou para um recorte de alcatifa. Era assim.
 
De repente, estávamos na casa do nosso anfitrião, e era uma casa cheia de salas, em que as salas nunca mais acabavam.
 
Em todas as salas havia várias mesas de chá, dispostas em filas como automóveis num engarrafamento, e cada mesa de chá tinha um bule de chá, um jarrinho de leite, um açucareiro e duas chávenas. Cada mesa tinha também duas cadeiras.
 
«Mas com quem é que este homem espera beber tanto chá?...»
 
Havia mesas chinesas, mesas japonesas, mesas preciosas de embutidos oitocentistas, de pau santo, com franjas de prata ou de ouro, mesas minúsculas, mesas de tamanho médio e mesas gigantes, de tal forma que me cheguei a perguntar se ali seria a casa dos sete anões. Tantas mesas preparadas e de tamanhos tão diferentes começaram a deixar-me verdadeiramente angustiado e com uma enorme vontade de fugir.

Por fim, chegámos ao quarto de dormir do velho senhor, com uma faustosa mobília de pau santo e baldaquinos de veludo escuro, e por todo o lado as pernas em forma de garras de dragão dos muitos móveis segurando bolas perfeitas entre os dedos nodosos e firmes, com um aspecto realmente ameaçador.

Por todo o lado, a madeira cintilante e negra exibia as suas volutas vegetais voluptuosas, contorcendo-se sensual e expressivamente. Eu tocava no velho homem, que me atraía, e via através do seu corpo uma onda vermelha que partia do estômago e que alastrava pelo tronco e pelos seus quatro membros.

«Não podes tocar-me.» Dizia-me ele, sem voz. «Não vês que estou morto e que já não tenho corpo?...» Aterrorizado, eu desatava a correr e corria sem parar por aqueles planos que mudavam alucinantemente.

Ora um castelo, ora um fosso, ora uma escada rolante, ora uma torre de vidro, ora uma gaiola, ora um corredor. Atravessava um supermercado onde havia muita comida congelada, mas fechava os olhos. Não queria perceber que tipo de comida comeriam os mortos.

Do alto de uma varanda, havia uma mulher que me vigiava, e eu pensava: «Um elevador!...» «Um elevador que me faça descer à terra e que me livre dos malditos andaimes!...»

Porém, uma vozinha dentro de mim alertava-me com justiça que descer por um elevador no mundo dos mortos provavelmente não me levaria ao local ansiado.

«Os andaimes!...» Pensava eu. «Dêem-me de volta os andaimes!...»

Antes estar a milhares de metros de altura do que estar perdido no mundo dos mortos, sem encontrar o caminho de regresso.

Antes vertigens do que isto.

Este estranho e alucinante labirinto ilógico de tumba.

Esfir Chub

Fragmento 105


O FIM DA DINASTIA ROMANOV (1927)


Continuo a amar estes filmes antigos.

Sorvo os rostos, as paisagens, as posturas, os movimentos, os corpos...

Queria fazer uma pausa na tela a toda a hora, para ver, ver, ver...

Este era um filme de ideologia comunista (russo), um documentário de imagens reais, sem actores, e por todo o lado aquela massa de rostos assustados e espantados, a expressão da incompreensão estampada nas faces dos camponeses e das pobres multidões, meio atordoadas, meio desorientadas.

Impressionante.

Filmavam-se os trabalhos. Nos campos, as mulheres fortes e dobradas a ceifar numa incrível velocidade, como se disso dependesse toda a vida, muito pobres, alheadas das câmaras. Nas fábricas, os gestos velocíssimos e oprimidos dos homens amontoados nas atmosferas pestilentas.

Ritmo, ritmo, ritmo.

O ritmo dos marinheiros, uns atrás dos outros, a meterem ogivas nos canhões dos navios, perfeitamente coordenados, como violinos numa orquestra.
O ritmo dos homens a saírem das trincheiras em alta velocidade para a frente de batalha, como toupeiras de um buraco: um, dois, três, quatro, zác, zác, zác, zác.

Com o esforço de tanta coordenação rítmica, como é que se pensa em morte, mesmo que se corra de frente para ela?

Peças de máquinas, moléculas de fluxo, por todo o lado se vê homens e mulheres a formar correntes, como átomos em linhas de água.

Um tiro e os homens da linha da frente saltam sobre o arame farpado, disparando as espingardas. Alguns caiem, outros continuam.

A senhora com o seu cãozito, a beber chá em chávenas de prata no jardim, muito satisfeita e orgulhosa. Quando se levanta, dois criados saltam de trás de um arbusto para levantar a mesa, enquanto ela se afasta com o cão.

Os aristocratas suando em bica para dançar a mazurca, batendo os pés contra a madeira do convés de um paquete de luxo, e as gordas senhoras muito brancas, transpirando nos fru-frus de rendas esvoaçantes.

Mas o que é curioso é como o aspecto geral das coisas não muda quando chega a revolução.

São as mesmas paradas, os mesmos rios de gente atordoada, as mesmas fanfarras.
Em vez de bandeiras, tablóides. Em vez de um rei-fantoche vestido de trapos de luxo e de crachás preciosos, um líder de carne e osso a contagiar multidões de esperança (Lenine, com uma força de contágio absolutamente espantosa).

Alguma ebriedade, nos rostos, é o aspecto dessa esperança.

Mas tudo parece igual, em termos de imagem geral sem definição ou explicação histórica. Um chefe e os seguidores. Armas. Poderes. Lobbies. Capitalistas e burgueses aproveitam a revolução a seu favor, enquanto se decapitam os príncipes.

As multidões partilham a mesma miséria, o mesmo espanto.

Um exército um pouco mais sóbrio, menos pomposo, menos rígido... Mas ainda uma máquina de guerra.

É o que gritam as imagens do filme mudo.
 
Desaparece o hieratismo, mas as forças de poder parecem as mesmas. Trocam-se as cadeiras, como num velho jogo.



Artaud

Fragmento 55


De um modo mínimo ou intermitente, pelo menos, posso acreditar que me conheço.

Essa poderá ser uma crença operacional, desde que usada por intervalos de tempo limitados. Mas a cada passo de existir me surpreendo.

Por exemplo, naquele distante mês de Dezembro, a estranha e maravilhada perturbação de ver numa imprevista radiografia, de súbito expostas nos seus brancos ossos luminosos, transparentes e vivos, e com um contraponto tão incandescente - as mãos.

Elas saltam do envelope, as imagens, e eu ali fico, petrificada.

Olho-as como se fossem peristilos de flores ou aranhas vistas de muito perto ou estalactites, com o mesmo fascínio e admiração abstracta que me levam a amar a estranha natureza terrestre e cósmica com um primitivo respeito e veneração.

Afinal, já não quero ser reduzida a cinzas depois de morta.

Deixem que o meu corpo actual se disperse em mil pedaços e que voe em chamas.

Enterrem-me então e que estes ossos façam parte do chão e sejam também como todos esses testemunhos anónimos de como é urdida aqui na terra a nossa primeira casa ou primeiro templo: ponto por ponto, rima por rima, repetição por repetição, diferença por diferença - de contraponto em contraponto.

É incrível - tudo o que somos capazes de ver quando a dança faiscante dos corpos enfim se mostra.

Súbita sinfonia incandescente das coisas terrestres ou ritornello de estrelas, linha de fuga da arte imperscrutável que atravessa o mundo - e destas inesperadas imagens soprava uma força de beleza que de novo me inspirava um ascetismo violento.

«Nada de boca. Nada de língua. Nada de dentes. Nada de laringe. Nada de esófago. Nada de estômago. Nada de ventre. Nada de ânus.» E eu diria ainda: «Nada de carne.»

 
parce qu'a mon corps
on ne touche jamais *

 
 
* Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de Dieu (1948)

Sobre a liberdade


Sonho LXVII

 
Estava preso numa fria e escura catacumba, em conjunto com uma mulher grávida de tempo avançado. O chão de terra batida era húmido e, das paredes, longas estacas afiadas como espadas saíam, de alto a baixo. Por todo o lado se viam centenas de estacas alinhadas que à distância poderiam parecer uma seara metálica na vertical.

Estávamos tão cansados que tínhamos dificuldade em permanecer de pé, mas não podíamos sentar-nos no chão, nem encostar-nos às paredes. A mulher começou a chorar, desesperada, e cambaleava com as costas perigosamente perto das estacas. Decerto pensava como conseguiria ter o seu bebé, mas que podia eu fazer?...

Havia ali um largo poço que se abria no chão como uma cratera. Uma longa escada em espiral descia na escuridão e parecia realmente intransitável, absolutamente intransitável.

«Não há outra solução. É preciso descê-la.»

Comecei a descê-la sozinho, porque a mulher não quis seguir-me. Ela dizia que ali era a Morte, a fronteira com um outro mundo, a partir do qual nos evaporávamos. Mas à medida que descia apercebia-me que o chão estava mais limpo e que as estacas começavam a desaparecer. Aí era pelo menos possível encostar-nos às paredes. Qual era o problema se nos evaporássemos?... Não podíamos ficar pior do que já estávamos.

Entretanto, chegava a hora da visita e uma multidão de turistas perfumados percorria em fila as catacumbas, atrás do guia que explicava as mesmas coisas, ora em espanhol, ora em francês, ora em inglês, ora em chinês.

Esses patetas olhavam para nós como se fôssemos ratos embalsamados ou qualquer outra espécie museológica de corpos conservados em formol. Eles eram muitos, e nós apenas dois, mas para toda essa gente que ali passeava paulatinamente não havia qualquer comunicação com a nossa realidade. Era como se fôssemos animais de outra espécie, que tinham sido ali colocados, justamente, por um obscuro desígnio inquestionável.

Se aquilo era uma saída, ou a Morte, como dizia a mulher, ou um antro de crocodilos, pois estávamos na América do Sul, era bom que ninguém se apercebesse do que eu tinha descoberto. O melhor era que o inimigo não reparasse nos nossos movimentos e nos considerasse presos e aniquilados, não fosse ele mover novas forças contra nós.

Éramos activistas pelos direitos humanos numa ditadura monstruosa e por isso nos observavam como se fôssemos casos de museu. Enquanto nos miravam de alto a baixo, deixávamo-nos estar imóveis na nossa posição miserável, sujos, pestilentos e exaustos, atravessados pela dor que nos vinha dos pés como por uma espada de aço que nos furava de lado a lado.

«Vão-se embora, sua cambada de hienas.» Era no que eu pensava.

Terminada a hora da visita, dediquei-me de novo às minhas explorações. Descia na escuridão, tacteando o chão com as pontas dos pés, mas, depois de muito descer, aterrado e vacilante, aconteceu uma coisa inexplicável.

Descobri uma saída para um baldio, um miserável descampado que parecia em tempos ter servido para acumular sucata.

Não era lógico que ao descer as escadas de uma catacumba tivesse ido ao encontro da superfície.

Estávamos no meio de uma selva tão perigosa, que estar preso ou em liberdade eram apenas os dois termos de uma equação irresolúvel. Mas aquela nesga limpa de céu e um tufo de flores que me olhavam cara a cara, esses dois elementos recordaram-me de súbito que sabia voar. Com uma pequena corrida ganhei balanço e consegui montar-me numa corrente de ar.
 
«Vamos lá, rapaz!... Não te esqueças que sabes voar!...»

Na verdade, estava bastante destreinado, mas apanhei o jeito muito depressa. Voava, voava, voava e pensava: «Pior do que estar preso pelas circunstâncias ou pelos homens, são os pensamentos que nos amarram e condenam.» Miseráveis pensamentos que nos impedem de explorar o mundo e nos deixam à mercê de carrascos, como múmias embalsamadas.